
Urbanismo e Sociedade
O problema da habitação depende, antes de mais, da política
Igor Martins, Fotografia
Ana Mota, Textos e Vídeo
Aos 91 anos, Álvaro Siza continua a chegar calmamente ao escritório com vista para o Douro, para projetar edifícios e cidades em construção à volta do Mundo. O arquiteto reconhecido mundialmente, galardoado com o prémio Pritzker em 1992, trabalha sobretudo no Oriente: China, Coreia e Taiwan. Em Portugal, onde acredita existir uma “perseguição tenaz aos arquitetos”, olha com preocupação para o futuro, “negro” para as cidades e para a profissão.

O arquiteto sempre quis ser escultor, já falou sobre isso várias vezes.
O que o encantou na arquitetura?
O ter frequentado uma escola em reformulação com um novo diretor e uma nova equipa muito boa. O diretor, o mestre Carlos Ramos, vinha de um concurso em Lisboa em que foi recusado. Quando veio para o Porto a faculdade recebeu-o logo. Era uma pessoa excecional que pôde contratar uma nova equipa, gente nova, alguns recém-formados. O arquiteto Távora, o arquiteto Filgueiras, convidou os melhores. Gente nova que queria a modernidade quase proibida. O arquiteto Bonito, o arquiteto Rica, Viana de Lima… chamou os melhores. Interessei-me pela arquitetura, que não me interessava nada. Foi o ambiente que se criou na escola, excecional.
Os professores que referiu foram protagonistas da luta pela modernidade. Essa ousadia, essa vontade de ir ao encontro de algo novo, foram determinantes no seu percurso?
Procurava-se fazer o que à escala mundial era contemporâneo. O exercício da arquitetura era muito condicionado, isso refletia-se, por exemplo, no ambiente da Escola de Lisboa e da Escola do Porto. Lisboa estava muito perto do poder, tinha o poder nas barbas, de maneira que estava muito controlado. Só nos anos 50 é que se retoma uma relação importante entre as duas escolas.
O arquiteto Fernando Távora foi o primeiro a demorar-se nos seus desenhos. ?Foi importante esse reconhecimento, deu-lhe uma certa confiança para seguir em frente ?
Não começou por ser reconhecimento, nem podia ser porque eu era um aluno nada brilhante ou saliente no curso. Tinha entrado com a ideia de mudar para escultura, que era na mesma escola. Não foi um especial atendimento. As turmas eram pequenas e o corpo docente era de gente muito jovem que se interessava pela reformulação do curso. Essa reformulação foi feita em pouco tempo, por uma nova equipa interessada em se libertar dos condicionamentos que existiam muito com a ideia de uma arquitetura nacionalista, uma ideia em Portugal absurda, particularmente. Não existe uma arquitetura nacional. A arquitetura é muito diferente, como provou o inquérito da arquitetura portuguesa vernacular. É diferente de norte a sul, por ter raízes diferentes. A influência nórdica no Norte, celta no Sul. O norte montanhoso, o sul planície. O material principal no norte, granito. No sul, mármore. Tudo era diferente, portanto, a ideia de uma arquitetura nacional, era uma importação sem sentido, sem nexo.
Disse, numa entrevista, que o “subconsciente é um bom amigo, quando é preciso ajudar, ajuda”. Que referências e inspirações tem guardadas no subconsciente?
A aprendizagem de um arquiteto, em grande parte e durante toda a vida, tem uma base importante em ver o Mundo, em ver o que se faz, criticando. Criticando no bom sentido da palavra. É a possibilidade de atenção ao que se faz no Mundo, bom e mau. Faz-se mais mau do que bom. Particularmente hoje, que é um dia triste, como os últimos dias são.
Como é que define cidade?
Não defino. É uma irresistível concentração de gente à procura de trabalho, de melhores condições de vida, o que nem sempre encontra. Mas há uma desertificação do interior, em Portugal, aldeias desertas. A movimentação que tem havido é essa e depois existe a concentração em pequenos territórios, pequenos em comparação. Não é por acaso que nas cidades estão, de um modo geral, as universidades, os centros, as galerias de exposição, etc. Há uma concentração de estudo e de meios que faz com que a cidade seja fundamental no desenvolvimento do saber e na capacidade da humanidade. Ao mesmo tempo, há esse aspeto da destruição.
Pensar as cidades, com uma elevada concentração de pessoas, torna-se mais complexo para o trabalho dos arquitetos?
Não diria isso. Na cidade é onde há mais referências e é onde há uma maior reflexão sobre o papel dos arquitetos, que hoje é um papel que está a ser rasgado. Não é por acaso que atualmente os concursos para obra pública são feitos entre construtores, não entre arquitetos. O papel do arquiteto é cada vez mais subestimado. É interrompido. Além da destruição das cidades, a destruição da profissão.


O arquiteto hoje, face a todos os constrangimentos que são colocados ao seu trabalho, tem que ter esperança no futuro?
Não penso muito no futuro, porque o futuro vai ser breve, naturalmente. O que penso mais é no dia-a-dia, enquanto houver dias. A situação da arquitetura é assim hoje e é assim em toda a Europa. Existe uma perda de controle que se traduz numa perda de qualidade, necessariamente. O futuro que eu vejo de momento é negro. Em Portugal faz-se um projeto que está muitos meses, às vezes anos, a ser analisado e, eventualmente , é reprovado, sobretudo se tiver alguma qualidade. A qualidade passa a ser um intruso, uma coisa que se introduz indevidamente nas cidades, é o que se passa. Os tempos de trabalho para qualquer projeto são infindáveis. Tenho um projeto em Veneza que não está ainda concluído, na Giudecca, foi um concurso internacional, em que a construção começou há 47 anos. É prejuízo para toda a gente, mas sobretudo é prejuízo para a cidade.
Uma grande parte dos seus projetos foram chumbados. Houve algum que lhe custasse especialmente? Que viria a revelar novos valores da arquitetura?
Não, se não passava a vida amargurado. Ultimamente, aqui no Porto, tive dois reprovados, na marginal de Gaia. A razão de um deles foi esta: a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) estabelece, junto dos rios e do mar, cotas previstas na subida das marés. Fiz um edifício de apartamentos e cumpri a cota. O projeto andou a passear mais de um ano pelos seis departamentos que se pronunciaram. Acabou por ser aprovado em cinco, mas o sexto foi essa APA. Recebi uma carta a dizer que tinham decidido subir a cota de marés e, como tal, o projeto foi chumbado. A subida da cota de marés indicada significa fazer desaparecer o tabuleiro inferior da ponte Luís I, a marginal de Gaia e a marginal do Porto. Portanto, varria a Ribeira até à Alfândega. Isto é um exemplo clamoroso, mas exemplos menos espetaculares há muitos.
Quando é chamado a intervir numa cidade, através do seu trabalho, é chamado a pensar sobre o futuro dessa cidade. Fê-lo no Porto, no âmbito do Porto 2001 ou na Malagueira, por exemplo. Como é que faz este exercício de projetar o futuro ?
Uma das fontes para encontrar a solução arquitetónica é a conveniente relação entre os diversos espaços de um edifício, de acordo com o que nele se processa e com a abertura que permite resistir ao passar do tempo e ao mudar das funções. A consideração da função que o edifício deve cumprir é fundamental, é uma das bases para o desenvolvimento de um projeto, sempre numa perspetiva de que as funções mudam. Tem que haver uma possibilidade de abertura no relacionamento entre os espaços que faça com que o edifício seja durável. Materialmente durável, a construção, mas também enquanto habitat.
No que toca a referências, do passado histórico ou do presente onde o projeto se insere, o que mais privilegia ?
A qualidade da cidade mede-se pelo relacionamento do que se vai fazendo. Quem vai a Paris, à cidade luz, não vai à periferia porque as periferias da maior parte das cidades têm muito pouco interesse. Vai ao centro histórico por alguma razão, porque aí, por circunstâncias várias, há um relacionamento entre coisas de séculos diferentes. Paris tem a Sé, a Catedral que ardeu, mas que foi maravilhosamente reconstruída. Foi quase um milagre aquela reconstrução, de rapidez e de qualidade. Nos avanços técnicos, na rapidez com que se pode responder a um programa e no saber, no estudo.
Vivemos uma crise na habitação que está a retirar este direito a muitas pessoas. Como é que se resolve este problema ?
Esse é um problema, antes de mais, político. Há uma perda de tempo enorme de não correspondência entre o que se passava na afluência às cidades e os programas implementados. De modo que há um atraso enorme e os números hoje são impressionantes. A arquitetura sempre dependeu mas hoje, particularmente, depende das opções políticas ou destes atrasos ou esquecimentos, como queiramos chamar.


As cooperativas de habitação, usuais nos anos 80/90, também permitiam o acesso à habitação a custos acessíveis, através de uma lógica de coletividade, de união entre moradores. Esta perda de sentido coletivo, também afeta a vida das pessoas nas cidades ?
As cooperativas perderam a importância. O SAAL era um exemplo do que pairava na Europa, naquela ideia de participação e de conversa com os utentes futuros. Em toda a Europa, mas muito na França, na Itália onde o movimento era mais forte. O SAAL começa no momento em que esses temas eram os temas europeus mais importantes na arquitetura, mas isso passou rapidamente.
O programa SAAL teve uma grande adesão porque era o oposto do que anteriormente se fazia em relação à questão das ilhas. Mas depois tudo isso foi dissolvido. Não havia muita gente a trabalhar nisso e a que havia foi caluniada e afastada. Particularmente no meu caso, a Bolsa foi interrompida e nos jornais surgiram críticas sobre o exemplo da incompetência dos arquitetos aderentes a esse programa. Noutro aspeto correu-me bem. Fui imediatamente convidado para trabalhar, primeiro na Alemanha, depois na Holanda, depois em Espanha e por aí fora. Como havia um grande interesse pelo processo participativo na Europa, veio muita gente ver a revolução, incluindo muitos arquitetos. Portanto, comecei a ter trabalho, não aqui, que tinha zero, mas na Europa.
Como diz, as cooperativas de habitação entretanto desapareceram. Essa perda de sentido coletivo, afeta a vida nas cidades?
Claro, embora hoje exista sempre, mas não da mesma forma. A cidade tem exatamente essa multiplicação de relacionamentos diversificados. A vida da cidade caracteriza-se por isso e quando isso enfraquece, e o que se faz em termos de urbanismo, tem a ver com isso evidentemente. Não é o que mais conta, mas conta e tem a ver com o que se faz em termos de arquitetura.
A visão pessimista que apresenta quanto à ideia de cidade do futuro explica o facto de desenhar frequentemente anjos?
Isso é de vez em quando. É para parar um bocado da montanha de obstáculos e problemas que caracteriza hoje o exercício da arquitetura, quando existe. É uma coisa que vem da infância. Comecei a desenhar muito catraio, animado por pessoas crescidas e isso não passa. Entretanto, voltei a fazer escultura, mas lá está, na China. Tenho feito escultura, paineis de azulejos, etc, nos trabalhos da China, Coreia e Taiwan. Aqui não.
Há um esquema, um desenho muito conhecido de Corbusier em que classifica a arquitetura como um balanço, uma relação entre a ciência e arte. A arquitetura é uma ciência e arte, mas o resultado disso não foi o que contava Corbusier. Nem é ciência, nem é arte.
Então o que é que é ?
Deixei de saber o que é, nem me preocupo muito, porque é, quando é.
Tem 91 anos e continua a fazer arquitetura. Assim será até ao fim dos seus dias?
Enquanto tiver condições para isso, vou.


