
Urbanismo e Sociedade
Rio de Onor resiste ao último sopro do comunitarismo
Considerada uma das últimas aldeias comunitárias do país, Rio de Onor agarra-se à memória para lutar contra o despovoamento e honrar velhos costumes que quase desaparecem. Faltam as pessoas, dizem-nos por lá, mas não a vontade de despertar o sentido de comunidade que, durante anos, uniu o povo e não olhou a fronteiras.
Mal tinha terminado a escola primária e já Domingos Fernandes ajudava a tomar conta da “vacada” e “das ovelhas do povo”. Sabia bem que devia acompanhar o pai ou um vizinho até ao terreno onde os animais pastavam e, dessa forma, ajudar a cumprir a tradição de Rio de Onor, aldeia comunitária do nordeste transmontano onde a entreajuda e a partilha sempre foram lei e modo de vida.
“Naquele tempo, há uns 70 anos, todos faziam a sua parte naquela roda-viva. Hoje iam uns, amanhã iam outros e por aí adiante, mas quem tinha mais cabeças de gado era obrigado a ficar mais dias”, recorda o morador desta povoação do concelho de Bragança, colada à fronteira com Espanha. “Depois, quando chegava a altura, lá ia o povo todo ceifar o feno para o touro, que também era de todos, para que o animal tivesse comida. Havia sempre um vizinho que se prontificava a alimentá-lo e, assim, ficava liberto do restante trabalho”, explica, antes de lembrar que a aldeia também partilhava um moinho e um forno comunitário.
“Ah! E ainda tínhamos o rionorês, que é um dialeto cá da terra”, acrescenta, esclarecendo que o “cá da terra” tanto se refere a Rio de Onor, como à vizinha espanhola Riohonor de Castilla, na província de Zamora. Afinal, as duas povoações fronteiriças nunca deixaram de partilhar laços de identidade e comunitarismo, numa busca pelo bem comum que atravessou séculos. “Esta união deve-se muito ao isolamento das duas aldeias, o povo de baixo e o povo de cima, como sempre se trataram, que acabou por dar em casamentos entre os dois lados e famílias misturadas”, explica o presidente da União de Freguesias de Aveleda e Rio de Onor, Mário Gomes. “Na verdade, podemos dizer que nada separava os dois povos. Apesar de uma corrente que existiu na fronteira até 1974, ninguém precisava de autorização para passar”, recorda o autarca.
Já adulto, Domingos Fernandes, foi convocado por uma ou duas vezes a representar o pai nas reuniões do “Conselho do Povo”, onde marcavam presença todos os chefes de família, chamados pelo toque do sino da igreja. Nesta espécie de assembleia popular, conduzida por dois mordomos, distribuíam-se tarefas e aplicavam-se multas. As transgressões e faltas eram apontadas com cortes numa vara da justiça, feita em madeira de choupo, e pagas em medidas de vinho, “que tanto podiam ser de um litro, cinco ou dez, mas também meio cântaro, se fosse uma coisa mais pesada”. Quando o corte dava a volta à vara, o chamado almude, era sinal que aquela família não escapou à maior multa, revela o morador (na imagem em baixo, com uma vara na mão, ao lado de Mário Gomes).
Hoje, Domingos tem 80 anos e Rio de Onor conta com menos de meia centena de habitantes, todos idosos, além de muitas casas deixadas ao esquecimento. O comunitarismo também se esvaziou quase por completo, “porque a aldeia perdeu o mais importante de tudo, as pessoas”, reflete Mário Gomes. “É uma pena”, acrescenta Domingos Fernandes, lembrando que “chegou a haver 200 vacas e um touro, partilhados por todos, claro, e agora nem uma”.
Ainda assim, ambos garantem que este modo de vida não caiu no esquecimento, como lembra, por exemplo, a Casa do Touro, entretanto transformada em espaço museológico. Outro exemplo é o Festival D'Onor, que todos os verões “volta a fazer um Conselho de forma simbólica, a acender o forno para almoços e jantares comunitários e a juntar o povo em pequenas atividades conjuntas, como a limpeza das margens do rio”, lembra o autarca. Na edição de 2025, realizada simultaneamente em Rio de Onor e Riohonor de Castilla, entre18 e 20 de julho, também não falta música tradicional, bailes, demonstrações de artes e ofícios ao vivo, uma residência artística, um ciclo de cinema rural e um showcase, intitulado “Aldeia sem fronteiras”.
No resto do ano ainda há alguns trabalhos em comum, como o ajardinamento da aldeia, que reúne todas as mulheres da povoação. “É interessante constatar que, das nossas quatro aldeias, é em Rio de Onor que se torna mais fácil organizar alguma atividade. Se, de repente, precisar de fazer um evento de um dia para o outro, já sei que posso contar com as pessoas”, diz o presidente da União de Freguesias. E um bom sítio para as encontrar é no café da associação, onde se costuma juntar boa parte da comunidade.
“Ainda que haja qualquer coisa”, dizem os moradores, também reconhecem que já não se pratica o velho comunitarismo. Mas não deixam de querer honrar o passado em comum e resgatá-lo sempre que possível, nem que seja para mostrar aos visitantes da aldeia, esses sim, cada vez em maior número. Apesar de lamentarem o aumento do individualismo, dizem que ainda se manteve algum espírito de entreajuda e de vizinhança, talvez um resquício dos valores comunitários que a terra sempre cultivou. Também por isso, Domingos Fernandes fala num misto de orgulho e ensinamento, acreditando que até as cidades têm a aprender com o passado desta aldeia. “Ponham os olhos em nós. Para que a história da nossa aldeia sirva de exemplo, nem que seja para o futuro daqueles lugares que ainda têm gente”, conclui.