
Urbanismo e Sociedade
Um convite ao envolvimento com a cidade através da fotografia
Ana Mota, Texto
Ana Miriam e Rafael Moreira, Fotografia
A ligação com o Porto informal, com os lugares não dominantes da cidade, surgiu muito antes do início do trabalho académico. O primeiro registo, captado há praticamente 15 anos, transmitia já especial atenção a recantos escondidos que comunicam com quem os observa. Foi a apropriação dos espaços pelas pessoas, nas suas mais variadas expressões informais, que chamou a atenção de Ana Miriam Rebelo, autora do projeto de investigação que reflete sobre as formas de participação na construção da cidade.
Interessava-lhe centrar o olhar sobre locais esquecidos pela cidade, “entregues a si próprios”, que foram apropriados por quem os habita. Pinturas feitas à mão nas fachadas, bancos de jardim nas entradas ou canteiros improvisados nos parapeitos das janelas. As demonstrações informais, espontâneas e diversas, vivem escondidas numa cidade dominada por “linguagens globais”, que se instalam como “um verniz estranho sobre a cidade”. E foi para registar, documentar, mas sobretudo “alimentar a imaginação do que poderá ser a cidade no futuro”, que Ana Miriam Rebelo se debruçou pelos recantos mais surpreendentes da cidade do Porto.
Numa primeira fase, explorou diferentes zonas da cidade. Da Foz Velha a Azevedo de Campanhã, passando pelos Bairros do Amial e de Paranhos, pela zona da Arrábida ou Monte Xisto, em Matosinhos. São variados os exemplos que encontrou e fotografou, de práticas e estéticas de habitação informal, muitas delas instaladas nas típicas habitações operárias do Porto. As imagens, que resultaram dessa pesquisa documentada, revelam uma relação entre habitantes e lugares, que passa pela questão da pertença e da apropriação, diz a investigadora. “Percebi que as pessoas muitas vezes estão nos sítios há muito tempo e que sentem que os lugares lhes pertencem. Não no sentido legal, da propriedade, mas pela própria presença e pela relação emocional que se constrói. Sentem, ao mesmo tempo, que o lugar lhes pertence e que pertencem ao lugar. Acho que há um movimento nestes dois sentidos que faz com as pessoas sintam que podem intervir no espaço público. E isto muitas vezes revela um cuidado que acho inspirador”.
Um dos locais “inesperados”, que a inspiraram logo à partida, fica junto à estação ferroviária de Campanhã. A entrada na Travessa Presa da Agra, depois de um percurso em terra batida, expõe um espaço rural, que “contrasta com a violência e o ritmo frenético” da Rua do Freixo. É neste pedaço de “aldeia” rodeada de cidade que Ana Miriam centrou um dos casos de estudo. “Fui progressivamente percebendo o que é que me interessava explorar em termos de investigação, mas também o que é que importa valorizar, em termos culturais e sociais, nestes territórios. A transformação da cidade tem sido muito rápida, nas últimas décadas, o que torna urgente a documentação destes lugares. O registo de formas de habitar em desaparecimento pode revelar-se importante para alimentar a imaginação do que poderá ser a cidade no futuro”, explica a fotógrafa e investigadora.


Documentar uma cidade em mudança
Fernanda Reis e José Reis moram numa das primeiras casas do Bairro da Agra, na interseção da Travessa Presa da Agra com a Rua da China. Aquele espaço que habitam há uma vida, e que foi sendo melhorado e ampliado, sobrevive na incerteza da linha de alta velocidade. A casa de Fernanda e José poderá vir a ser engolida pela construção do TGV. “Dizem que isto vem abaixo. Eu já estou preparada, mas o meu marido nem pensar. Quando chegar a altura de nos comunicarem vai-lhe dar o badagaio”, diz Fernanda Reis, debruçada na varanda do último piso.
Assim como os restantes moradores, o casal aguarda a carta que comunique a decisão da Infraestruturas de Portugal. O estudo de impacte ambiental revela que a linha de alta velocidade ameaça cerca de 40 casas no Porto e em Gaia, mas só com o projeto de execução se saberá quantas e quais serão as habitações afetadas. “Este lugar está condenado, as pessoas vão ser deslocadas, vão ver as suas casas destruídas e não fazem ideia para onde irão, nem que meios terão para ir para outro lado. Se puder ajudar a trazer visibilidade para esse problema, gosto de fazê-lo”, revela Ana Miriam, que quer continuar a documentar este território e a transformação que se anuncia.
São várias as dimensões sociais representadas neste pequeno lugar plantado com vista sobre o Douro. Generosa Mendes, a última moradora de um bloco habitacional destinado a turistas, conhece-os bem. A morar em Campanhã há 44 anos, altura em que trocou Castelo de Paiva para viver e trabalhar no Porto, também não sabe se terá de deixar o cantinho onde vive. “Ainda não sei de nada, mas só saio daqui se me derem casa. Não vou ficar na rua”, diz.
A casa onde reside está colada a um alojamento local, mas existe um cantinho de terra - que antes utilizava para cultivo e para abrigo de animais - que resiste à passagem do tempo. Por ocasião de uma intervenção na via pública junto à antiga linha férrea da Alfândega, Generosa Mendes conseguiu que o pedaço de terreno que tem à porta de casa fosse preservado. Marca que não foi indiferente ao olhar de Ana Miriam, que captou e registou a imagem para memória futura. “Estes lugares da cidade funcionam como um antídoto. Às vezes podemos sentir estranheza em relação a espaços da cidade com os quais não conseguimos estabelecer relações. Sejam espaços tão pouco apropriados que não revelam nada acerca de quem neles vive, sejam os novos espaços de consumo, invadidos pelas linguagens do mercado global. Quando se percorre estes espaços [como Bairro da Agra em Campanhã] existe essa reciprocidade e essa comunicação com o espaço”, explica a fotógrafa e investigadora.
O registo que faz dos vários pormenores, seja de um canteiro improvisado numa soleira da porta ou de uma modesta horta junta à estrada, fazem parte de uma “composição” visual que elaborou com base num propósito. Na interpretação da investigadora, a construção de futuro sobrepõe-se ao olhar nostálgico de uma memória. “As cidades mudam, inevitavelmente, mas é importante pensar o que é que fazemos questão de levar para o futuro, de que é que não abrimos mão?” Essa questão sobrepõe-se à urgência de guardar, numa espécie de ‘trauma da perda’, como diz o meu co-orientador Álvaro Domingues”, afirma a investigadora.
A investigação “Cidade informal: contributos de uma etnografia visual para um imaginário político expandido”, financiada pela FCT e acolhida pelo Instituto de Investigação em Design Media e Cultura (ID+) e pelo Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU), contou com a orientação de Heitor Alvelos e Álvaro Domingues.
“Penso que estes lugares têm alguma coisa que nos faz falta. Passa muito por essa humanidade, por essa comunicação, por esses pormenores que falam conosco quando olhamos para eles. Este projeto também é um convite a olhar a cidade e a envolver-se com ela, afirma a fotógrafa e investigadora, que aspira a um futuro com cidades mais democráticas e justas.







