
Urbanismo e Sociedade
Porto avança na pedonalização e aproxima-se de vizinhos europeus
Ana Mota, Texto
Rafael Moreira; Shutterstock, Fotografia
O programa está a ser implementado na Baixa e Centro Histórico do Porto e abrange cerca de 30 quilómetros de arruamentos. O objetivo passa por criar percursos mais “amigáveis” para o peão, enquanto se despromove o uso do carro. A autarquia do Porto quer “humanizar o espaço público” e aproximar os cidadãos da cidade, em linha com o que já acontece na Europa.
Um dos arruamentos que dá maior visibilidade ao programa é o Passeio das Virtudes que, tal como o nome sugere, já privilegiava a circulação de peões. Atraídos pelo miradouro, uma janela com uma vista única para a cidade, já era quem se movia a pé que mais se fazia notar naquele arruamento. Com a intervenção da Câmara Municipal do Porto, concretizada no primeiro semestre de 2025, passa a existir uma maior área pedonal - que cresceu cerca de 20% - e os carros deixam de circular a mais de 20km/h. “Tudo se deve subordinar à velocidade de um ser humano a caminhar, de um peão. Essa é a lógica, humanizar os espaços públicos e criar uma rede coerente de percursos amigáveis para o peão, desde Gonçalo Cristóvão ao rio Douro. Criar uma rede articulada de espaços qualificados e agradáveis para a fruição dos cidadãos”, explica Pedro Baganha, vereador do urbanismo e espaço público da Câmara Municipal do Porto.
O programa, que começou com a pedonalização da rua Alexandre Braga e que integra a intervenção na Rua de Cândido dos Reis, nas Galerias de Paris, pretende tirar o protagonismo ao carro e colocá-lo “para baixo na lista de prioridades”. A medida inclui a pedonalização de alguns arruamentos, proibindo totalmente o trânsito automóvel, mas também prevê o trânsito automóvel condicionado, com a redução da velocidade máxima a 20km/h. As alterações ao nível da mobilidade são postas em prática tendo em conta preocupações ambientais, que vão desde as decisões materiais às opções estratégicas. “Em termos de impacto ambiental é uma obra bastante relevante. Para além de termos alargado as caldeiras de todas as árvores, foram reaproveitados a maior parte dos materiais, como o cubo do pavimento. Na camada de base colocamos aglomerado proveniente da incineração de resíduos urbanos, o que ambientalmente tem bastante impacto porque estamos a falar de uma grande área”, afirma Renata Pinho, arquiteta gestora da obra que compreende o Passeio das Virtudes, a Rua de S. Miguel e a Rua de S.Bento da Vitória.
A Rede 20, que abrange a área central da cidade, delimitada pelas ruas Álvares Cabral e Gonçalo Cristóvão a norte, pela Restauração, D. Manuel II, Maternidade, Boa Nova e Boa Hora a poente e pelas ruas da Alegria e Fontaínhas a nascente, irá alterar a mobilidade na cidade de forma gradual, num período estimado de três anos. A intenção é que as obras avancem à medida que os condicionalismos decorrentes das obras do metro desapareçam. “Durante demasiado tempo, durante demasiadas décadas a mobilidade foi considerada o esteio, como sendo a pedra basilar do espaço público. A atitude que aqui estamos a implementar é a de perceber que o espaço público é o suporte das redes de mobilidade, mas é muito mais do que isso. É o espaço vital de uma comunidade que o usa para fazer acontecer a cidade”, diz Pedro Baganha.
Para o vereador do pelouro do urbanismo e espaço público, não é possível implementar o condicionamento de trânsito automóvel particular sem uma oferta de transporte coletivo robusta, que sirva de alternativa ao transporte individual. “Esse é claramente o único futuro possível para termos uma cidade humana, qualificada e ao mesmo tempo dinâmica e vibrante. É o reforço das redes de transporte coletivo, enquanto temos uma nova abordagem no espaço público”, concretiza Pedro Baganha.
A solução integrada, pensada em articulação com outros fatores e atores que compõem a mudança de paradigma, é defendida por Ana Brandão, doutorada em espaço público e regeneração urbana. A investigadora do Instituto Universitário de Lisboa (Iscte) defende que a implementação de zonas 20 deve ser acompanhada pelo reforço do transporte público, mas também pelo envolvimento da comunidade que utiliza os espaços públicos. “Espera-se que as pessoas alterem os seus comportamentos e isso não é uma coisa que acontece só porque se muda o redesenho da cidade. Se queremos que as pessoas passem a utilizar os espaços de outra forma, é preciso trabalhar com as comunidades. Em Portugal falhamos muito nesse sentido. O investimento ainda está muito naquilo que é a obra física e pouco nessa dimensão mais humana”, afirma a investigadora do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território, unidade que pertence ao Iscte.
A investigadora, que atualmente trabalha em parceria com municípios, no apoio à construção de políticas públicas orientadas para a transição climática, reforça a importância da “conjugação entre soluções técnicas e a definição de políticas”, que sejam “muito bem comunicadas às populações”. Caso contrário, “podem ter efeitos perversos que fazem com que os projetos recuem e voltem para trás”.
Participação cidadã como pilar estratégico
Existem bons exemplos ao nível europeu que demonstram a eficácia do envolvimento das pessoas nas decisões políticas estruturais. No caso de Paris, onde foram encerradas 500 estradas ao trânsito automóvel, a participação cidadã tem sido uma das bases da estratégia política de Anne Hidalgo. A partir de 2014, altura em que tomou posse como presidente da câmara, foi implementado um dos maiores programas de orçamento participativo da Europa, com cerca de 5% do orçamento da cidade a ser reservado para projetos propostos e votados pelos cidadãos. Na grande maioria ligados à mobilidade sustentável, requalificação de ruas, criação de zonas verdes e percursos pedonais.
Em março deste ano, através de consulta pública, a Câmara Municipal de Paris aprovou o projeto de pedonalização e ecologização de 500 ruas, que implicou a eliminação de 10 mil lugares de estacionamento, cerca de 10% do total da cidade. Embora apenas 55 mil dos cerca de 1,4 milhões de eleitores tenham votado, a medida foi aprovada por 66% dos parisienses que foram às urnas.
Para além dos mecanismos de participação cívica ao nível político, Anne Hidalgo colabora com associações e coletivos ligados à mobilidade sustentável e apoia a educação urbana como mecanismo para a mudança de comportamentos. O resultado foi a aprovação de diferentes medidas para a descarbonização do centro de Paris, como a criação de corredores verdes, a construção de ciclovias e a redução da velocidade para 30km/h em quase toda a cidade.
Mudança exige coragem política
Os instrumentos de planeamento, muitas vezes com um horizonte temporal superior ao ciclo político, exigem consenso e uma “visão de futuro” que permita que a mudança não “dependa do tempo da política”. Existem outros exemplos europeus que comprovam a eficácia de estratégias pensadas a longo prazo, que contrastam com “muitos instrumentos em Portugal, que acabam por não conseguir articular diferentes visões, a diferentes tempos”, na opinião de Ana Brandão.
No caso de Pontevedra, na Galiza, o processo de transformação do centro urbano começou em 1999, numa decisão histórica do alcaide Miguel Anxo Lores, que se mantém à frente da câmara municipal daquela cidade. Embora não esteja limitado a quatro mandatos de quatro anos, como define a lei autárquica portuguesa, a aposta de retirar os carros do centro de Pontevedra revelou-se sustentável politicamente, com Miguel Anxo Lores a ser sucessivamente reeleito com maioria absoluta.
A estratégia passou por devolver o espaço público às pessoas, através de várias medidas que transformaram a cidade num modelo de mobilidade sustentável. Para além da proibição de carros no centro histórico, foi eliminado o estacionamento à superfície, substituído por lugares de estacionamento em parques periféricos, foram implementadas zonas de 30km/h nas áreas envolventes e o espaço público foi reconfigurado com passeios mais largos, que dão prioridade a peões, bicicletas, crianças e pessoas com mobilidade reduzida. Os resultados começaram a ser visíveis ao longo dos anos, com a redução de mortes por atropelamento no centro da cidade - que passaram a zero durante vários anos consecutivos - o aumento do comércio local, o reforço da coesão social e o forte apoio popular ao modelo implementado.
O plano, que enfrentou resistência inicial de comerciantes e automobilistas, acabou por ser bem-sucedido devido à consistência da decisão de Miguel Anxo Lores, que recusou ceder a recuos. O mesmo aconteceu no Porto, onde a pedonalização do centro da cidade gerou preocupação. “As primeiras reações que tivemos à pedonalização eram de preocupação, em particular dos moradores. O que eu posso dizer é que, felizmente, acho que essa guerra está ganha. É inevitável que o Porto acompanhe aquilo que se está a fazer por essa Europa fora que é a progressiva pedonalização do centro da cidade. Esse caminho é inexorável e não se vai voltar atrás”, afirma o vereador do urbanismo e espaço público da Câmara Municipal do Porto. A cidade do Porto iniciou a implementação da Rede 20 em julho de 2023, através do Gabinete do Espaço Público da empresa municipal GO Porto, sendo que as intervenções nos arruamentos deverão ocorrer pelo menos até 2026.