Refugiados fintam o destino com uma bola e duas balizas

Urbanismo e Sociedade

Refugiados fintam o destino com uma bola e duas balizas

Nelson Jerónimo Rodrigues, Texto
Tomás Antunes, Fotografia 

Ayamuddin Mohammadi tinha apenas 11 anos quando deixou o Afeganistão, sozinho, para fugir a “uma guerra cruel e sangrenta, que nem as crianças poupa”. Atravessou a fronteira para o Paquistão e continuou a pé pelo Irão e pelo Azerbaijão antes de chegar à Turquia, já às portas da tão desejada Europa, onde passou fome e dormiu ao relento. Uma rede de tráfico de pessoas prometeu-lhe a entrada na Grécia, a troco de dinheiro, mas só o conseguiu à 14.ª tentativa, num “barco minúsculo de borracha, com mais de 40 adultos e crianças, que a certa altura começou a meter muita água”. Depois de 25 horas em alto mar, a embarcação foi encontrada por um navio militar, mas, desta vez, os migrantes não tiveram de regressar ao ponto de partida e acabaram entregues a um campo de refugiados na ilha grega de Lesbos. Ayam, como gosta de ser tratado, ficou por lá dois anos, até que o trouxeram para Portugal, em pleno confinamento, e “as coisas começaram, finalmente, a ganhar um rumo melhor”.

Nesta nova vida, o desporto e, em particular, o Welcome Sports Club, deram uma ajuda preciosa. Trata-se de um projeto que utiliza o futebol, o críquete e outras modalidades como ferramenta de integração de refugiados e migrantes em Portugal, muitos deles menores não acompanhados. Coordenado pela associação portuguesa Social Innovation Sports, funciona em várias cidades do país, como Lisboa, Porto, Fundão ou Santarém, e todos os anos apoia cerca de uma centena de rapazes e raparigas de vários países, com destaque para o Afeganistão e o Irão.

Entre eles está um grupo de jovens afegãos, apaixonados por futebol, que costuma juntar-se às sextas-feiras no Parque de Jogos 1.º Maio (INATEL), em Lisboa, para treinar, conviver e preparar a participação da equipa em torneios. Foi lá que os encontrámos, já noite dentro, porque a maioria trabalha e estuda durante o dia. É o caso de Ayam, que, desta vez, fica só a assistir e a conversar connosco. Em português, conta-nos como este projeto foi importante porque “ajudou muito a adaptação a vários níveis, da língua à cultura, ao mesmo tempo que permite o encontro com amigos, e sobretudo, tornou-se fundamental para encontrar um emprego, na restauração de um supermercado”.

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Ayamuddin Mohammadi joga futebol amador, trabalha num supermercado e sonha publicar um livro
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O Welcome Sports Club junta refugiados e migrantes de várias partes do mundo

Um dos objetivos do projeto passa, precisamente, por colocar os participantes em contacto com as empresas, permitindo-lhes visitar as instalações, conhecer o mercado de trabalho e participar em processos de recrutamento. “Fazemos isso quando sentimos que estão preparados para trabalhar, até porque os empregadores olham cada vez mais para perfis como estes, de uma enorme resiliência, que encontram soluções diferenciadas e trazem uma grande diversidade e valor às equipas onde trabalham, além de se mostrarem sempre muito agradecidos”, revela Ricardo Carvalho, cofundador da Social Innovation Sports.

Quando acontece, é sinal que os refugiados já passaram por outras fases de acolhimento e integração, iniciadas assim que chegam ao país. “Como têm de aguardar por trâmites legais e burocráticos, por vezes demorados, atuamos logo em conjunto com outras entidades, ajudando-os a sair de casa, a relaxar e a prevenir eventuais problemas de saúde mental”, diz o responsável pelo Welcome Sports Club. Depois, chega a etapa da sociabilização e da formação de competências profissionais, muitas vezes potenciada “pela paixão que sentem pelo desporto e pelo simples facto de poderem praticar a modalidade que tanto gostam com outras pessoas, sejam elas conhecidas ou não. Pode ser futebol, críquete, badminton, boxe ou outra qualquer, mas, para nós, o mais importante é encontrar um sítio onde eles se sintam bem”, acrescenta.

No caso de Ayam, agora com 20 anos (seis passados em Portugal), o futebol foi uma das primeiras âncoras, sobretudo graças a uma equipa de refugiados criada há alguns anos, a que chamaram Young Birds United. Depois, com o tempo, surgiram novas prioridades, como o trabalho e o curso profissional de soldador, porque lhe permitem “evoluir, aprender, ganhar dinheiro para melhorar a vida e ajudar a família”. Ao mesmo tempo, alimenta dois sonhos: publicar um livro que já começou a escrever, “para mostrar o que é ser refugiado e como a guerra divide tudo e todos”, e regressar um dia ao Afeganistão. Afinal, “a minha terra é como uma mãe, e isso sempre me fez querer voltar um dia”, desabafa, enquanto fixa o olhar no jogo dos amigos, mas voa para longe, em pensamento, até ao país natal.

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Jogadores procuram driblar a vida de refugiados através da paixão pelo desporto
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O futebol integra e faz sonhas

Ronaldo e uma bebé fazem acreditar

“O futebol pode mudar vidas”, diz um dos lemas do Welcome Sports Club, e Ayam é um bom exemplo, mas está longe de ser caso único. Em cada participante parece haver uma história de superação, como também acontece com Mohammad Ali Haidari, outro afegão que correu meio mundo e passou por “muitos sustos, medos e perigos” antes de chegar a Portugal. Do nosso país, só conhecia… Cristiano Ronaldo.

O capitão da seleção nacional tornou-se, assim, uma espécie de referência e modelo a seguir, tal como os treinadores e responsáveis do projeto “porque ajudaram bastante na integração a uma nova sociedade, a aprender a língua e a conhecer novas pessoas, de uma forma simples, ou seja, a jogar futebol”, conta-nos o jovem, de braço dado com o “mister” Pedro Mesquita. O treinador retribui o carinho, sublinhando que “todos estes jogadores são exemplos de coragem e amor pelo desporto”, que chegaram “apenas com uma mochila às costas”, tímidos e sem experiência competitiva, mas que, com o tempo, foram trabalhando “o saber estar, o chegar e participar numa prova, valorizando o respeito por tudo e todos, dos dirigentes e árbitros ao público”. Ainda assim, “uns jogam melhor do que outros e há quem não tenha pés para mais”, comenta, enquanto aponta, entre sorrisos, para Mohammad Ali Haidari. Este acena com a cabeça e, bem-disposto, reconhece que o mundo do futebol não é para todos. “Durante algum tempo quis ser futebolista, mas percebi que não sou um Ronaldo, devia ter começado a jogar mais cedo”, reconhece o polivalente futebolista amador que, no treino a que assistimos, tanto jogou à baliza, como à defesa e ao ataque.

Para o Welcome Sports Club, o desporto não é, necessariamente, um fim, mas um meio para atingir a integração plena em Portugal. “Alegra-nos saber que muitos deles chegaram até nós por causa do futebol, mas que agora estão a trabalhar, têm família e filhos, entendendo que a bola não tem de ser a coisa mais importante do mundo”, diz Ricardo Carvalho. Também por isso, a Social Innovation Sports organiza vários eventos desportivos, como a Welcome Cup, cujo objetivo primordial não é a competição, mas o convívio e a troca de experiências, não só entre migrantes radicados por todo o país, mas também com o mundo empresarial e a sociedade civil. Em várias ocasiões junta ainda um grupo de meninas e jovens migrantes fãs de futebol, oferecendo-lhes a oportunidade de praticar este desporto numa equipa feminina ou integradas com os rapazes.

Aos 20 anos, Mohammad tem várias razões de orgulho: o trabalho que conseguiu há três anos num supermercado de Lisboa, e, sobretudo, a filha, “uma pequena portuguesa”, nascida poucos dias antes da nossa conversa, que “ajuda a fazer a vida mais feliz”. Talvez por isso se imagine “a ficar para sempre em Portugal, um país maravilhoso, com pessoas muito simpáticas e um bom clima, não muito diferente do que há no Afeganistão”. E como mudou a vida deste jovem que deixou o sul daquele país aos 13 anos, sem grandes planos para o futuro, mas acabou por encontrar paz e estabilidade em Lisboa, a quase 7 mil quilómetros da cidade onde nasceu.

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Mohammad Ali Haidari encontrou a felicidade em Portugal
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O futebol é para todos e pode mudar vidas, diz o projeto da Innovation Social Sports
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A Welcome Cup é um torneio inclusivo com empresas e beneficiários do Welcome Sports Club
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O críquete está entre as modalidades com mais praticantes no Welcome Sports Club
Publicado em 6 Agosto, 2025 - 09:00
Inclusão
Urbanismo e Sociedade