Jardinagem de guerillha planta cidades mais verdes

Natureza

Jardinagem de guerillha planta cidades mais verdes

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Nelson Jerónimo Rodrigues, Texto
Nelson Jerónimo Rodrigues e João Roldão, Fotografia 

O nome jardinagem de guerrilha pode fazer lembrar algo bélico ou conflituoso, mas as únicas armas deste movimento são as plantas e as sementes, os sachos e as tesouras de poda, a água e o fertilizante. Mesmo tratando-se de uma atividade ilegal, por se apropriar do espaço público sem autorização, é, antes de mais, uma forma de ativismo urbano, pacífico, que transforma zonas vazias e abandonadas das cidades em pequenos jardins verdes e floridos. Em Lisboa, também teve o condão de unir comunidades e despertar consciências, a ponto de dar origem a um regulamento inédito. Mas, até lá, não faltaram resistências.

Um dos protagonistas desta história é Nuno Prates, que começou a plantar nas ruas da capital há 25 anos, quase sempre na calada da noite e “sob o olhar desconfiado de muita gente”. Durante o confinamento, decidiu cuidar de um pequeno espaço junto ao seu ateliê, mas a denúncia de um morador levou a Junta de Freguesia de Alvalade a arrancar boa parte das plantas. A decisão gerou uma onda de contestação que terminou num pedido de desculpas e na elaboração de um documento oficial, válido para todo o bairro, que regula a atribuição de pequenos jardins aos cidadãos. Já o canteiro inicial, cresceu, floresceu e transformou-se no luxuriante Jardim das Plantas Doadas, agora composto por mais de 150 espécies, a maioria exóticas tropicais. Ao mesmo tempo “mostra como as pessoas também podem chamar a si a missão de devolver jardins à cidade, fazendo deles um ponto de ligação entre todos”, diz este “jardineiro irrequieto” que “não se vê na pele de guerrilheiro”, porque “a intenção nunca foi confrontar, mas agir e mostrar indignação pela inoperância do poder local”.

Também conhecido por The Lisboan Gardener, lançou mais recentemente a iniciativa “reNaturalizar a Cidade”, que convoca os cidadãos a juntarem-se à causa da jardinagem de intervenção, através de ações de plantação em grupo para “cuidar e educar, ajudando a recuperar os espaços verdes abandonados”. Numa delas, a Junta de Freguesia de Arroios até se juntou inicialmente à iniciativa, mas a boa vontade inicial acabou em conflito “ao decidir arrasar tudo o que os cidadãos tinham plantado”, acusam os voluntários. Mais tarde, os responsáveis da junta justificaram a decisão com uma rutura no sistema de rega, que obrigou à replantação noutros locais, mas para Nuno Prates trata-se de “uma má e apressada desculpa”, em jeito de “reação aflita pela pressão da indignação pública que falou mais alto”.

Apesar dos obstáculos encontrados em vários trabalhos, promete continuar a plantar por toda a cidade, mesmo que volte a receber coimas, como aconteceu no passado. Alguns também o acusam de vandalismo, mas diz que “só o é porque está à margem de uma lei bacoca e retrógrada, tal como convém aos decisores locais”. Assim, sempre que encontrar um cantinho abandonado, este jardineiro lisboeta vai querer deixá-lo mais verde e bonito.

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Cinco Marias e um jardim

Quem também decidiu arregaçar mangas e pôr as mãos na terra foram cinco mulheres do bairro de Benfica que, há 23 anos, começaram a transformar um baldio desprezado num espaço cheio de árvores, flores e até lagos. Chamaram-lhe Jardim das Marias, nome comum a todas, e hoje dá sombra e descanso a muitos moradores do bairro e até a visitantes que querem conhecer este oásis a dois passos da Estrada de Benfica. Mesmo sem nunca terem ouvido falar em jardinagem de guerrilha, também elas acabaram por reivindicar o uso de um espaço público que “pouco a pouco, deixou de ser escuro, vazio e muitas vezes caixote do lixo, para ficar um pequeno paraíso”, como nos conta Maria Manuela Ferreira, de 80 anos.

Diz que fizeram tudo sozinhas, “gastando tempo e dinheiro por conta própria, só com pequenas ajudas da câmara e da junta, que, felizmente, nunca pedirem satisfações ou quiseram mudar o que foi feito com tanto amor”. Hoje, as bombas de limpeza dos lagos ainda são alimentadas por eletricidade que chega das casas particulares, mas a Junta de Freguesia já fornece a água e apoia em algumas tarefas, como a recolha de lixo. “Eu até gostava de fazer uma espécie de contrato com eles para que tomassem conta disto e realizassem algumas melhorias, como a colocação de placas informativas ou a instalação de candeeiros de iluminação que ando a pedir há uns cinco anos”, acrescenta a octogenária.

Maria Manuela Ferreira já se habituou a ouvir os elogios de quem utiliza este jardim comunitário, incluindo de outros moradores da zona, que também ajudam a vigiar o espaço e a afastar “algum malandro que possa querer roubar ou estragar, o que é raro acontecer”. “No fundo, todos perceberam que isto acabou por trazer tranquilidade e sossego, mas também segurança, porque não tem nada a ver com a lixeira que era antes”, lembra a fundadora do jardim, enquanto corta as pernadas de uma árvore. Entre pequenas chatices, como “a garça que quer comer os peixes do lago” ou “os miúdos que partiram a cabeça a uma estátua” há uma preocupação maior que a assola: “quando deixar de ter forças, quem vai cuidar de tudo?”. O futuro da cidade chama por mais jardineiros.

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Plantar ativismo em diálogo

Muitas vezes interventiva e ativista, noutros casos mais naif e espontânea, a jardinagem de guerrilha tem como denominador comum o desejo de repensar e dar novos usos ao espaço público, tornando-se, ao mesmo tempo, um estímulo à comunidade. Na opinião de Tomás Tojo, jardineiro, pensador e diretor do Festival Jardins Abertos, este movimento tem, desde logo, o mérito “de trazer as pessoas para o diálogo e para o debate, mesmo que as abordagens possam ser bastante diferentes”. Isto porque “haja objetivos comuns ou não, todas cruzam um ponto essencial, que é o pensar em urbes mais holísticas e mais integradas, em que o campo e a cidade apresentam uma relação construtiva”. 

Assumido ativista, fez parte do movimento de jardinagem de guerrilha de São Paulo, no Brasil, onde viveu alguns anos, e cuja lógica acabou por inspirar o festival que lançou em Lisboa. Embora continue a realizar alguns trabalhos mais informais, a maioria dos projetos atuais tem uma forte componente institucional, incluindo colaborações com autarquias. “Isso mostra que é possível fazer a diferença e participar em coisas interessantes quando é tudo mais integrado, com diálogo”, defende. Para ele, o futuro da jardinagem de guerrilha “não tem de ser, necessariamente, ilegal”, porque pode “nascer de um bem comum, identificado pelo coletivo e articulado com a resposta das instituições, em que todos estão alinhados”, acrescenta. E dá como exemplo várias iniciativas da associação Jardins Abertos, responsável pelo festival com o mesmo nome.

É o caso do projeto Bairro Verde, desenvolvido em colaboração com a Junta de Freguesia da Misericórdia, em Lisboa, cuja face mais visível pode ser encontrada junto ao Mercado dos Ofícios do Bairro Alto (MOBA). “Durante muito tempo, aquele edifício era recorrentemente pinchado, por isso decidiu-se plantar ali um corredor de buganvílias, envolvendo a população local, que deu origem a um colorido manto vegetal”, recorda Tomás Tojos. Já em Ílhavo, ajudou a encher de verde parte da Praça da Casa da Cultura, ao criar um jardim naturalista – o Planteia –, que é hoje “um polo de biodiversidade maravilhoso, nascido com o apoio de toda a comunidade”.
 

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Publicado em 19 Agosto, 2025 - 08:15
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