Agricultura urbana cultiva reabilitação mental no Hospital Júlio de Matos

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Agricultura urbana cultiva reabilitação mental no Hospital Júlio de Matos

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Nelson Jerónimo Rodrigues, Texto
Ricardo André e Wilson Sanches, Fotografia 

Uma horta vertical está a abrir horizontes e a mudar o dia a dia de dezenas de utentes da ala de psiquiatria forense do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. Juntos, dão corpo e alma ao “Recultivar”, um projeto que utiliza a agricultura urbana e a natureza como ferramentas de reabilitação e reintegração profissional.

Diogo Gonçalves inspeciona com minúcia cada folha de uma pequena alface roxa, que toca com extremo cuidado, como se fosse a coisa mais frágil e preciosa do Hospital Júlio de Matos. Para este utente da ala de psiquiatria forense, cuidar da horta tornou-se uma missão e “uma grande responsabilidade”, que cumpre religiosamente, a ponto de não conseguir passar um dia sem lá ir. Após tantos anos internado, encontrou uma rotina e um novo propósito naquele recanto verde rodeado de grades altas.

“Esta horta trouxe-nos um outro ânimo. Nós andávamos aqui sem fazer nada, fechados, e agora passámos a ter algo a nosso cargo, por isso ganhámos um amor especial por tudo o que ela nos dá, desde alfaces como esta, a acelgas e manjericão”, conta-nos o minhoto de 34 anos. Rafael Bernardi, outro utente, faz questão de aumentar o rol de plantas e vegetais que já lhe passaram pelas mãos, como tomates, espinafres ou rúcula, “tudo biológico e cuidado com muito carinho”, o que, garante, reflete-se no sabor dos alimentos. “E não somos só nós que o dizemos. Um dia, veio cá uma funcionária da cozinha buscar alfaces e tomates e fez uma salada deliciosa, elogiada por todos”, recorda com entusiasmo.

Diogo e Rafael são dois dos participantes do “Recultivar: Semeando a Reabilitação Mental”, um programa piloto de desenvolvimento de competências destinado à reabilitação mental e reintegração no mercado de trabalho de 44 internados do Serviço Regional de Psiquiatria Forense. Em comum têm todos um historial de doenças psiquiátricas, associadas a algum tipo de crime que cometeram, o que os estigmatiza ainda mais lá fora, mesmo sendo considerados inimputáveis. Mas ali, enquanto cuidam das plantas e tratam da terra, só lhes importa o presente que estão a cultivar e o futuro que esperam colher desta aprendizagem.

À frente do projeto está a Upfarming, uma organização não governamental (ONG) portuguesa que instalou naquela ala 20 torres aeropónicas, ou seja, cuja produção não recorre a terra, mas a um sistema automático de circulação de água com nutrientes minerais. “No epicentro desta intervenção está a horta vertical, uma ferramenta que suscita sempre entusiasmo e curiosidade pelo seu aspeto futurístico, mas também procurámos complementar o projeto com a reabilitação de 18 canteiros que permitem pôr as mãos na terra e um sistema de compostagem, além de outras novidades que estão para breve”, diz Margarida Villas-Boas, cofundadora da organização.

A gestora do projeto, Madalena Aires Horta, revela o que está para chegar, com destaque para “a criação de ninhos florestais, que vão tornar este lugar mais resiliente face às alterações climáticas”, graças à plantação de diversas espécies autóctones. A este trabalho, junta-se ainda o ciclo “Do Frasco para a Mesa”, composto por workshops “que abordam o aproveitamento dos produtos para fermentados ou outro tipo de saladas, para que possa haver uma utilização até ao fim do ciclo, até porque a circularidade máxima é um dos objetivos do projeto”, explica. “Nada se perde”, diz um dos internados, “tudo se transforma”, acrescenta outro. Incluindo a vida das dezenas de utentes que beneficiam desta iniciativa.

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Mais do que uma horta

Além das atividades na horta, dirigidas pela equipa da Upfarming, o projeto conta também com várias formações certificadas, através do Centro Protocolar de Justiça (CPJ), dedicadas não só às competências pessoais e emocionais, mas também à área da agricultura sustentável. “Queremos muito desenvolver essas competências para a empregabilidade e temos a esperança que vários destes utentes possam conseguir a reinserção no mercado de trabalho. Com estas formações, poderão sair daqui, por exemplo, com o certificado de operadores agrícolas”, explica Margarida Villas-Boas.

Essa é também a expetativa de muitos deles, como Diogo Gonçalves, que já se imagina a aplicar, no futuro, tudo o que agora está a aprender. “Isto é muito importante porque lá fora a vida não é fácil. Quando sair, e já não falta assim tanto, até estou a pensar trabalhar em jardinagem numa casa de saúde, em Barcelos, onde já tinha estado”, confidencia este “guardião”, como são chamados os participantes no projeto. “Quem sabe se a horta não ajuda a mudar a minha vida”, remata. Tal como ele, também o colega Rafael Bernardi já pensa numa eventual ocupação profissional ligado à agricultura ou à jardinagem. “Quando for mais velho, este pode vir a ser um bom trabalho lá fora. Além disso, nessa altura, vou poder ter uma casa e uma horta só minhas e usar tudo o que nos ensinaram”, comenta o jovem de 26 anos.

Tanto um como outro também fazem questão de lembrar que “esta horta não ajuda apenas os internados”, sublinhando que muitos dos alimentos são doados a instituições sociais, como a Casa do Gil ou a Associação de Reabilitação e Integração Ajuda (ARIA). E assim será, pelo menos, durante dois anos, período em que o projeto tem financiamento garantido (100 mil euros) por parte do BPI e da Fundação “la Caixa”.

Para João Oliveira, diretor do Serviço Regional de Psiquiatria Forense, é importante que os utentes valorizem o contributo que dão à sociedade, ao mesmo tempo que reforçam o espírito de grupo e o trabalho em equipa, além da autoestima e do sentido de pertença. E isso acaba por se refletir no dia a dia da ala psiquiátrica. “Nota-se que existe um grande investimento dos utentes no seu próprio projeto terapêutico, ao ponto de estarem muito mais motivados. A experiência com outras atividades de reabilitação tem revelado bons resultados, mas o facto desta iniciativa ser ainda mais estruturada deixa-nos com uma expetativa positiva”, afirma. O clínico lembra ainda que o contacto com a natureza pode potenciar a melhoria comportamental e o controlo dos impulsos, algo tão importante “em doentes como estes duplamente estigmatizados”. E Rafael Bernardi não podia estar mais de acordo: “a conexão com a natureza é uma coisa incrível, cheia de benefícios, e isso só nos faz bem”.

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Prisões, bairros e escolas antes do hospital

O “Recultivar” não é o único projeto da Upfarming dedicado à reabilitação e reinserção social através da agricultura urbana. Desde 2023 que a ONG portuguesa também desenvolve o “Horticultura Vertical, Solidariedade Horizontal”, dirigido a pessoas privadas de liberdade. O estabelecimento prisional (EP) de Torres Novas foi o primeiro a acolher a ideia, depois de ter sido desafiado a instalar uma horta com 40 torres, em tudo semelhantes às que agora existem no Hospital Júlio de Matos.

Neste caso, o trabalho é partilhado entre os reclusos e os guardas prisionais, enquanto os produtos hortícolas, todos biológicos, são distribuídos a famílias carenciadas e à cozinha do estabelecimento prisional que, assim, consegue melhorar a qualidade nutricional das refeições. Depois de receberem formação, os 41 participantes também passam a estar certificados na área da agricultura sustentável, o que lhes abre novas perspetivas profissionais para o futuro, até porque estão todos a cumprir o final da pena. A iniciativa, considerada um exemplo de boas práticas pelas Nações Unidas, chegou, entretanto, ao EP de Leiria, destinado a jovens reclusos e, em breve, deverá ser implementada numa prisão feminina. O objetivo é estendê-la a mais locais do país e mesmo da Europa.

A este projeto juntam-se outros, como o “Do Céu para a Mesa”, dedicado às crianças do Bairro das Murtas, em Alvalade (Lisboa) ou o “Da Escola para a Mesa”, que promove a alimentação saudável e sustentável junto da comunidade escolar. A Upfarming é ainda um dos 19 parceiros europeus a integrar o “Cultivate”, que se propõe a analisar, desenvolver e replicar ações e redes de partilha alimentar.  Em todas estas iniciativas há um denominador comum, a agricultura urbana enquanto ferramenta de inclusão e transformação social, fazendo jus a uns dos lemas da ONG: inspirar comunidades para plantar futuro.

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Publicado em 2 Setembro, 2025 - 08:21
Inclusão
Lisboa
Natureza
Sustentabilidade