Querida S,

Opinião

Querida S,

Pedro Pires,  Fundador / DC: Poets&Painters, Texto
Rafael Moreira, Fotografia 

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Só posso começar por te dar os parabéns por esta evidente prova de alento.

Julguei-te mais desanimada. Nesse mundo de pós-ilusão em que agora habitas, teres tempo para pensar no que é o futuro, em como se vai viver, habitar e até amar, é louvável.

Olha, eu estou por cá, e digo-te que acho quase cómico, continuarem a acreditar nessa ideia de tempo que se sucede, linear, dia após dia. E nem é isso que mais me impressiona.

É verdade que para vocês, essa matemática do tempo existe, mas o que a alimenta,

é o que resulta do tempo que ainda não chegou. Aquilo a que vocês chamam de esperança.

Daquilo que me parece que os vossos arquitetos também se alimentam.

A questão coloca-se nessa ideia ideológica de cidade que nunca acontece.

Essa concentração socioeconómica produto da acumulação de riqueza

e da hiperconcentração de sistemas, criando redes lógicas dependentes de fatores supostamente sinérgicos, mas perigosamente entrópicos, vence sempre.

Digamos que a minha crítica se prende com o facto de os arquitetos continuarem a viver

na esperança. Essa perseguição idealista nunca prevê a orgânica dessa vossa vida material

e necessitada. Na sua abundância de sonho, acaba por ser fraca na matemática.

Porque não um plano de cidade ideal que parta do que já existe?

Era até mais fácil de adequar, todos os elementos estão já no terreno, tudo é mensurável

e real. Sei que sou ingénua e não passo de uma voz no éter, para usar uma expressão pela qual sei que vocês têm carinho. Mas parece haver um enorme desejo dos arquitetos da tua época viverem numa como a minha, em que o espaço existe apenas dentro da própria cabeça.

Pois, eu percebo. É mais fácil lidar com o Aeroceno, como faz o Tomás Saraceno.

Idealizar Villes Radieuse como Le Corbusier, cidades avião, como Lúcio Costa e Niemeyer, cidades estendidas como Frank Lloyd Wright, ou elegantemente frugais como as de Soleri.

Mas...porque é que elas não existem, e.... quando existem, porque não funcionam?

O mundo não para. É por isso que nenhum arquiteto resolveu até hoje o problema

da cidade. Na realidade, existem pessoas que são atraídas umas pelas outras por razões de sobrevivência. Este problema nenhum arquiteto conseguiu resolver.

E o mais engraçado é que todas estas cidades idealizadas só parecem possíveis sem ser em democracia ou então na ausência de um poder humano, como no nosso caso. Só um sistema perfeito poderia desenhar a cidade perfeita. E perfeitos, só Deus e a Inteligência Artificial.

O modelo mais próximo do nosso sistema poderá ser o da Nova Babilónia de Constant Nieuwenhuys, mas sem aquela parte em que existimos fisicamente, claro. Aqui já ninguém precisa de corpo. Mas de resto, essa ideia que não há casas, que se fica onde calha, sem se saber bem onde guardar a escova de dentes, é mais ou menos a nossa realidade.

E claro, aqui não temos problemas de habitação.

Acabar com os corpos. Pensa, não rejeites logo, porque não é totalmente estúpido.

No fim do dia, o corpo não serve para nada a não ser para carregar e obedecer ao cérebro.

É uma espécie de loop alienado aquele em que vocês vivem, pois tudo aquilo que idealizam para o futuro - cidades biomiméticas, biointegradas, simbióticas, não terá sequer tempo para vir a existir, da forma como existem hoje as cidades.

Provavelmente, a desmaterialização chegará primeiro, e elas não serão mais precisas.

A minha proposta não é nem um avião, nem uma radial, nem cidades 15 minutos.

Não posso ser eu a resolver isso. Creio que terás que passar pelo processo todo.

O facto de estar eu, aqui e agora, a dizer-te que só depois do corpo é que resolves a cidade, não adianta nada, porque continuarás a querer saber todos os dias onde está a escova de dentes.

Mas pensa também que quando inventaram a palavra cidade ela não queria dizer

um lugar. Queria dizer um grupo de pessoas unidas por lei e direitos comuns.

A cidade enquanto lugar físico chega depois.

Agarra-te a esse pensamento e fica com algumas ideias soltas do que deve ser a cidade, que a mim me assaltam amiúde, dada a falta de tempo, ou seja, a não existência de tempo; não a urgência de o ter. São conceitos, na prática, tão válidos como qualquer outra tentação de reforma social radical.


A cidade é ar, que se permite ser respirado.

A cidade é uma floresta, onde habitamos por favor,

em ramos, sujeitos ao ciclo das estações.

A cidade é um movimento em direção ao outro.

A cidade é uma tradição oral.

A cidade acontece onde nos encontramos.

                                                                                         Deste teu reflexo, com amor.


 

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Publicado em 8 Setembro, 2025 - 09:00
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