Rui Simões: “A seguir aos filmes do 25 de Abril fui castigado violentamente”

Entrevista

Rui Simões: “A seguir aos filmes do 25 de Abril fui castigado violentamente”

CineEco, Imagem
Ana Mota, Texto

O cineasta Rui Simões, que completou este ano 51 anos de carreira, esteve 22 anos sem realizar filmes. O realizador português diz ter sido vítima de censura por parte do sistema democrático, depois de ter iniciado a carreira com produções sobre o regime fascista e a revolução do 25 de Abril.     

Rui Simões dedicou a carreira a realizar documentários, a maior parte deles focados na temática social e política, mas também ambiental. O realizador marcou presença, pela primeira vez, no festival de cinema ambiental CineEco, que se realiza na Serra da Estrela, até dia 18 de outubro.  

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Participou pela primeira vez no festival CineEco e logo com uma estreia nacional, com a exibição do Linha de Água, um documentário sobre a carreira artística de Vítor Gama. Porque é que decidiu documentar a carreira deste artista multimédia ? 

A ideia surgiu porque ouvi a sua música e escolhi-a para um filme. Fiquei muito curioso e quis conhecer o músico. Comecei a acompanhá-lo, filmei as intervenções dele, tudo sem pressão, sem meios nenhuns. Queria muito desenvolver este projeto, sem perceber muito bem por onde é que poderia ir, sendo que acabou por demorar dez anos até ser concretizado. Foi preciso ir acompanhando a sua obra, o evoluir do seu trabalho, para dar a conhecer as várias facetas deste artista. Ele não é só músico, é construtor de instrumentos, escreve composições, interpreta, faz espetáculos multimédia, dá concertos ao vivo em orquestra, enfim, tem várias vertentes artísticas e não só. 

Agradou-me também esta sua preocupação com o ambiente, com o facto de chamar a atenção para os problemas que existem, não só na Amazónia colombiana, mas também na Antártida, com o degelo. Todas essas preocupações ambientais e a sua capacidade de reinventar instrumentos, a partir de instrumentos de comunidades distantes em África e na América do Sul, tudo isso me levou a achar que era importante fazer este documentário.

De que forma a temática ambiental é colocada neste filme?    

Há uma narrativa ao longo do filme que vai chegar a essas preocupações e não é logo óbvio que isso está a acontecer. O espectador começa por conhecê-lo, por vê-lo a construir os seus instrumentos e por viajar com ele. Este aspecto da defesa do ambiente só é visível ao longo da construção do filme. Não é uma coisa óbvia, não é uma coisa direta. Vai-se construindo nas suas próprias narrativas musicais, onde ele também, além da música, conta histórias em imagem. Vamos percebendo que há ali uma preocupação até à parte final do filme, onde percebemos que há mesmo uma preocupação muito grande com a história da Antártida. Percebe-se, de facto, que ele está muito comprometido com esta luta ambiental. 

Os seus filmes sempre cumpriram uma função quase que ativista, de denúncia. A temática ambiental é algo que também lhe interessa ?  

É uma preocupação que está sempre presente, mas tem sido muito difícil. Temos imensos projetos que tocam este assunto e que não têm conseguido financiamentos. Tenho tido contacto com jovens realizadores, muito preocupados com este assunto, mas que os poderes públicos talvez não tenham percebido que é importante apoiar esse tipo de projetos.

A produtora, a Real Ficção, é uma produtora que trabalha sempre numa perspetiva ativista. Somos ativistas de muitas maneiras, não só nos problemas sociais que dominam a história, a política, a ligação de Portugal com os países de língua portuguesa, as artes em geral, o ambiente, a saúde mental, que também é algo que nos interessa bastante. Tudo o que são temas que consideramos prioritários lutamos para fazer esses filmes, mas nem sempre conseguimos. Na área do ambiente, de facto, não temos conseguido muitos financiamentos. 

O festival CineEco, que há mais de 30 anos se dedica à temática ambiental, ajuda a contrariar essa tendência?

Acho que este festival é muito importante por causa disso, porque traz uma consciência ao país. Saber que há um festival desta importância em Portugal, que é considerado um dos melhores festivais internacionalmente, acho que é bastante positivo. As escolas e as universidades têm que investir neste tema, nesta problemática. A sociedade, toda ela, tem que se mobilizar para que as pessoas sintam mais esta luta que é necessária travar, mas estamos longe de ter os resultados que gostaríamos.

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A sua aposta no cinema documental foi uma consequência da forma como a sua vida se desenrolou ? E refiro-me aos anos em que esteve exilado em França e na Bélgica para fugir ao regime. 

Foi mesmo isso. Dediquei-me ao documentário depois de ter feito uma escola de cinema, na Bélgica, quando tinha 30 anos e depois acontece o 25 de Abril. Ao querer fazer um filme sobre o 25 de Abril é evidente que não ia fazer ficção. O que queria era acompanhar o que estava a acontecer nas ruas e por todo o lado. Entro no documentário quase que forçado porque a minha formação, de facto, não era de documentário, era de ficção. Nas escolas de cinema, normalmente, o que se aprende é a fazer ficção. Naqueles anos não havia sequer essa noção de que era preciso aprender a fazer documentário, era qualquer coisa que estava um bocadinho à margem. 

Fiz os documentários sobre o 25 de Abril, tanto o meu primeiro filme Deus Pátria Autoridade, como o Bom Povo Português, como uma série em São Pedro da Cova, no Porto. O que acontece é que, depois de fazer estes filmes, quis fazer ficção e nunca consegui um financiamento. O argumento que os júris davam é que era um documentarista. Só muito mais tarde, há dois anos, é que consigo fazer o A Primeira Obra, que é a minha primeira obra, de facto, de cinema de ficção. Arrumaram-me na secção dos realizadores de documentário e a partir daí liquidaram a possibilidade de fazer ficção. 

Acredita que pode ter sofrido algum tipo de censura ? 

Claro que sim. A primeira censura aconteceu quando estive 22 anos sem trabalhar. A seguir aos filmes do 25 de Abril fui castigado violentamente. Todos os anos tentava projetos de documentário ou de ficção e todos os anos os meus projetos eram rejeitados. Talvez os projetos fossem muito maus, se calhar eram, mas os meus filmes tinham tido referências muito boas. Aliás, os filmes ainda hoje estão constantemente a ser programados. Ainda no dia 5 de Outubro, há dias, o Bom Povo Português foi programado na RTP2. Mesmo assim, são 22 anos em que não consigo trabalhar. 

Há uma censura evidente e não é uma censura de nenhum sistema fascista, nem de nenhuma ditadura, é a própria democracia que me censura. É contraditório, mas é a realidade e acho que vale a pena pensar porque é que isso aconteceu, porque é acontece e porque é que estamos onde estamos hoje. São lições que contribuem para pensarmos melhor a sociedade em que vivemos e a maneira como os portugueses se organizam e decidem. 

Mais de 50 anos depois da realização do Deus, Pátria, Autoridade, como é que olha para a ascensão das forças políticas de extrema direita ? 

A extrema direita, de facto, consegue recolocar-se no centro das atenções, mas devido a muitos erros que a própria esquerda democrática foi tendo ao longo dos anos. É uma espécie de bom povo português, como o título do meu segundo filme. O bom povo português tem que castigar alguém, neste caso castiga o poder que está.

Havia uma grande expectativa de que as sociais democracias viessem resolver os grandes problemas das sociedades, mas continua a haver exploração, continua a haver corrupção, continuam a haver muitas injustiças e por isso é normal que o populismo venha ocupar o espaço daqueles que se revoltam. As novas bandeiras vão por aí. 

Num dado momento pensamos que a luta pelo ambiente poderia ser uma nova bandeira e acredito que até seja, mas se calhar não se instalou de maneira a poder liderar um grande movimento de massas, que transforme os caminhos da sociedade. A economia neste momento toma conta de tudo, abafa qualquer possibilidade de evolução e de libertação dos desejos das pessoas. Este populismo faz apelo a tudo aquilo que as pessoas querem ouvir. Até seria interessante vê-los no poder. Seria interessante perceber como eles são medíocres, ignorantes e que nada fariam de bom para a população. 

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Aos 81 anos, qual é que gostava que fosse o seu próximo projeto ? 

Se alguma vez conseguir financiamento para esse projeto, gostava de fazer ficção científica. Vão achar que estou louco, que estou a querer divagar, mas acho que a única resposta que posso dar ainda, com a minha idade, é de facto deixar esta realidade e passar para um outro plano, sempre na linha do meu pensamento. 

Já estamos completamente metidos nesse mundo da ficção, somos controlados pelas fake news e pela inteligência artificial. A gente já está aí. Pensamos que é uma coisa nova, mas estamos completamente dentro disso. A maior parte da informação que recebemos já é construída pela inteligência artificial. A realidade já não é suficiente, de facto. 

E a ficção também pode ser usada como arma de luta ?  

Comigo é sempre isso. Cada um escolhe a sua maneira de estar nas artes e no cinema. Sou considerado um cineasta militante e não tenho qualquer problema com isso. Fico até muito honrado de o ser. Nessa minha militância continuo a lutar por valores que considero que são valores importantes.

Existe algum grande tema que ainda gostaria de tratar ?

Há um que gostaria de ter tratado, mas que acho que não vou tratar nunca, que é o tema do poder. O que é o poder, como funciona o poder, seja que poder for. Não só o poder político, mas o poder como lugar que tanto se ambiciona para se dominar. Esse era o tema que gostaria de ver tratado e que infelizmente não consegui.

Publicado em 17 Outubro, 2025 - 09:00
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