
Cultura
A arte que faz de nós comunidade
Maria Cláudia Monteiro, Texto
Há palavras que se gastam de tanto serem ditas e “comunidade” talvez seja uma das que mais perdeu espessura. Repetida como promessa de união ou usada como adorno político, tornou-se, muitas vezes, uma ideia sem corpo. Como observa o criador, programador cultural e investigador Hugo Cruz, é preciso ir além da palavra fácil: “Mais do que falar de comunidade no singular, temos de falar de comunidades em constante evolução... A ideia cor-de-rosa de que uma comunidade boa é harmoniosa e sem conflito não existe e pode até ser perigosa. Muita da tensão é até a riqueza de uma comunidade”.
A reflexão oferece uma chave útil para pensar as experiências artísticas que procuram reconstruir o comum. Não como lugar de consenso, mas como espaço de tensão, escuta e criação partilhada. Foi o caso de “Babel”, espetáculo encenado por Nuno Cardoso, em junho, no Teatro Carlos Alberto, no Porto.
A ação decorre numa paragem de autocarro, um espaço real, de espera, de trânsito e encontros improváveis. Não há metáforas abstratas: há corpos presentes e vozes que se fazem ouvir. Em palco, atores profissionais, músicos, imigrantes, reformadas, ex-reclusos, pessoas com deficiência, cada um fazendo de si e do seu contrário. Babel não é apenas uma peça, é uma comunidade em construção.
“Não vou usar a comunidade para as minhas crenças. É fácil fazer uma escrita simples disto, num estilo melodramático. Mas é preciso organizar o discurso, ir abrindo. E para isso eu estou aqui”, observa Nuno Cardoso. “Babel” resiste à tentação de arrumar as vozes num discurso homogéneo. Assumindo as fricções, os tempos diferentes, os receios e as urgências de cada um, o espetáculo propõe uma arquitetura provisória de entendimento. Como lembra Nuno Cardoso, trata-se também de reagir a uma cidade em transformação: “A cidade mudou muito nos últimos anos, menos moradores, mais turismo, mais imigração, mais discurso populista. "Babel" é uma forma de trazer a comunidade de volta ao centro do discurso”.
Entre fragmentos de histórias de vida, ecos de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, e coreografias de encontros e desencontros, “Babel” constrói-se como plataforma de escuta e revelação. Luísa Costa, psicóloga comunitária reformada, uma das atrizes de improviso, escolhida entre as mais de 250 pessoas que participaram nos seis workshops “Atelier 200 – Babel” para gente comum e entusiastas do teatro. “Estive 42 anos presa no trabalho. Quando me reformei, quis fazer as coisas de que gosto: teatro, poesia, literatura. Inscrevi-me sem a intenção de ser selecionada. O prazer começou a transformar-se numa responsabilidade”. Na peça, interpreta uma mulher da Ribeira que vende na rua, como tantas “heroínas da Ribeira e da Afurada”, diz com o mesmo orgulho com que encarna a personagem e os problemas atuais, como a gentrificação. “Esta cidade continua a não ser para velhos. Muitos têm hoje medo de perder a casa. É importante que as pessoas saiam do teatro a pensar, a questionar”, acrescenta.
Também Rosa Quiroga, atriz com 40 anos de carreira, regressa ao palco do Carlos Alberto com o entusiasmo de quem reencontra um lar: “Os palcos são a minha casa, desde os 18 anos. Sinto muita alegria de voltar a sentir o público, o cheiro daqueles panos, reencontrar as pessoas”. E acrescenta: “Estas vozes são as muitas vozes de uma cidade, de um país. Espero que as pessoas se sintam tocadas por este espetáculo.”
A dada altura de “Babel”, os espectadores são convidados a subir ao palco e a dançar com o elenco. É mais do que uma cena festiva: é a suspensão das barreiras entre palco e plateia, intérpretes e público, biografia e ficção. Por um instante, Babel deixa de ser espetáculo para se tornar experiência: todos ali fazem parte do mesmo gesto.
Desfazer o mito da harmonia
Numa sociedade onde se confunde frequentemente “comunidade” com “união sem conflito”, “Babel” mostra outra coisa: que o teatro comunitário não é a ilusão de uma aldeia feliz, mas o esforço real de estar com os outros, sabendo que nem sempre é fácil, nem sempre é claro e, ainda assim, vale a pena. “A arte pode ser esse espaço onde nos confrontamos com o outro, que é necessariamente diferente de mim. Um território onde conseguimos imaginar realidades que ainda não existem”, enquadra Hugo Cruz.
Mas imaginar não basta. “O maior perigo das formas atuais de participação é a sensação de ineficácia: a ideia de que a minha presença não altera nada”, diz aquele programador cultural e investigador. Em vez disso, é preciso criar processos em que o envolvimento transforma o resultado. E isso, no teatro, significa abrir espaço real para as vozes dos outros: “As pessoas sentem que aquilo resulta também de um bocadinho delas. Isso é muito poderoso. Um programa que nasce de muitas vozes convida a cidade de outra forma”, acrescenta.
Num tempo marcado pela polarização e pelo ruído, Hugo Cruz defende uma arte que não seja apenas confirmatória, que não represente o mundo tal como é, mas o estranhe e reconfigure: “Há uma arte hiper-realista, que representa as coisas como elas são. Mas eu acredito mais numa arte que nos convida a imaginar o que ainda não existe. Que nos tira do lugar confortável e nos estimula a refletir”.
Isso exige abandonar ideias pré-fabricadas de consenso. “É urgente deixar cair o mito da comunidade harmoniosa. O desafio não está em pôr a tónica no que temos em comum, mas sim no que temos de diferente e no que, apesar disso, conseguimos construir juntos.”
Tal como em “Babel”, também noutros projetos de criação comunitária se procura pensar o comum sem cair na ilusão de uma harmonia fácil. Maria de Vasconcelos, responsável pelo projeto “O Tempo Cura?”, desenvolvido no concelho alentejano de Odemira, com apoio das fundações Gulbenkian e “la Caixa”, descreve o desafio de construir encontros entre gerações, migrantes e habitantes locais, num território marcado por feridas históricas e desigualdade social: “Estamos novamente na iminência de voltarmos politicamente ao fascismo e culturalmente também. É um alerta, sem ser panfletário: há muito que ganhámos, mas tudo é frágil sem consciência coletiva”.
Quando o palco escuta o passado
É nesta tensão, entre memória e esquecimento, entre repetição histórica e transformação possível, que o teatro comunitário se afirma como gesto político e poético. Como nota Hugo Cruz, “há um certo romantismo com que se quer retratar este tipo de projetos”, mas “são duríssimos de se fazer, sobretudo no interior do país”. A escuta das vozes que normalmente ficam de fora exige tempo, cuidado, confronto e uma pedagogia da consciência. “A arte pode ser esse espaço onde nos confrontamos com o outro, onde desmontamos tensões e produzimos alternativas às realidades como elas são hoje”, afirma.
Em projetos como o de Maria de Vasconcelos, essa escuta acontece não só em cena, mas também à mesa: a estreia do espetáculo, em julho, terminou com um jantar partilhado, gesto simbólico e real de convivência, onde “as pessoas podem conversar informalmente e manter um ambiente de festa”. Não se trata de moralizar, mas de criar condições para que cada um, com a sua história e experiência, chegue por si a uma leitura crítica do mundo. “Cada pessoa tem a sua estratégia para lá chegar. Temos de acreditar nisso”, afirma.
O teatro comunitário, neste sentido, não é apenas um espetáculo que se assiste, é uma prática social, uma forma de estar e construir em conjunto. “A ideia de comunidade não pode ser reduzida a consenso ou uniformidade. A riqueza está na diferença, na tensão produtiva, no diálogo entre perspetivas”, recorda Hugo Cruz.
O coletivo “Onda Amarela” mostra que a arte comunitária não é apenas um gesto pontual, mas uma prática sustentada que parte de uma ideia simples e exigente: criar juntos. Ana Bragança, fundadora do coletivo com Ricardo Batista, lembra que tudo começa com uma folha em branco e uma pergunta: “O que é preciso para que um grupo de pessoas partilhe este sentimento de ‘nós’?”. A resposta, diz, encontra-se no tempo, na escuta e na prática artística como espaço de encontro e descoberta: “De repente, percebemo-nos muito mais próximos do outro do que pensávamos, descobrimos histórias comuns, criamos laços”.
O espetáculo pode durar uma hora ou duas, mas o processo leva meses. É feito de encontros intergeracionais, oficinas com quem nunca pisou um palco, caminhadas por aldeias ou refeições partilhadas ao ar livre. “Trabalhamos com quem quer participar. O único requisito é a vontade”, diz Ana Bragança. Essa abertura, esse gesto de confiança no outro, talvez seja o primeiro ato de criação.
Filipa Francisco, coreógrafa e criadora de “Mundo em Reboliço”, defende esse espaço da arte como lugar de pergunta: “Se não questionarmos o mundo, acabamos por não viver. Nunca somos protagonistas da nossa história”. O trabalho com comunidades, de Arganil à Cova da Moura, de prisões a aldeias, parte da dança para revisitar memórias, afetos e geografias. Com o Grupo Folclórico de Arganil, a mistura de música e dança tradicionais com práticas contemporâneas deu origem ao filme “Mississipis”, de António Pedro. Noutro projeto, no Ribatejo, a proposta de um fandango dançado por mulheres foi recebida com resistência. Mas, depois de dois meses de ensaios e conversas, o grupo entendeu: “Não queríamos desvirtuar nada. Queríamos criar novas memórias”.
“O trabalho artístico comunitário não é confortável, nem deve ser. Há tensão, há confronto, há dúvidas. Mas também há descoberta”, nota Hugo Cruz. É nisso que insiste Filipa Francisco, quando fala da mulher de 80 anos que, ao improvisar no acordeão pela primeira vez, se encantou com “o som do ar”. Ou quando recorda as jovens do bairro da Cova da Moura a dançarem no Centro Cultural de Belém, ocupando, com o corpo, espaços que antes lhes pareciam inacessíveis. “É preciso abrir janelas e ir para lugares de questionamento”, diz. “Só assim há deslocamento de públicos. Só assim é que se transforma a paisagem.”
Projetos como os da “Onda Amarela”, “O Tempo Cura?”, “Mundo em Reboliço” ou “Babel” não oferecem respostas fáceis. São experiências frágeis, intensas e cheias de interrogações. Mas mostram que, mesmo sem garantias, é possível criar lugares provisórios de convivência. Lugares onde a arte, feita em comum, ajuda a resistir ao ruído e à indiferença.