
Entrevista
Francesco Tonucci: “Ofereçam o espaço público para as crianças brincarem"
Nelson Jerónimo Rodrigues, Texto
A criança como paradigma de uma cidade para todos é a visão de Francesco Tonucci, o psicopedagogo e cartoonista italiano que escreveu o livro “A Cidade das Crianças” e fundou a rede internacional com o mesmo nome. Defensor de políticas urbanas que garantam o direito ao brincar, diz que é tempo dos mais novos voltarem à rua, mas sozinhos, sem adultos.
Enquanto critica o poder do automóvel nas cidades, o ensino nas escolas e os parques infantis convencionais, Tonucci vai lembrabndo que o espaço público sem barreiras é o mais democrático e saudável local de brincadeira.
Quase três décadas depois de escrever “A Cidade das Crianças”, o livro continua a ser uma referência internacional e o conceito é seguido por cada vez mais municípios em todo o mundo. O que torna esta obra tão atual?
Os motivos que lhe deram origem têm vindo a piorar ao longo do tempo, em vez de melhorar. A primeira motivação do projeto “A Cidade das Crianças” foi a minha preocupação com as crianças do início dos anos 90, que já não podiam sair de casa sem adultos. Este foi o aspeto que motivou a proposta inicial de uma cidade à medida das crianças e que expliquei ao presidente da câmara da minha cidade natal, Fano, que aprovou o projeto em 1991.
Este problema preocupava-me muito quando pensava no tema da solidão das crianças. Esta devia-se à baixa natalidade, por isso era muito provável - e agora é ainda mais – que estivesse ligada aos filhos únicos, sem companhia e sozinhos em casa. A isto junta-se um dado novo: nos tempos que correm, as crianças não podem sair de casa. Essa experiência era normal em todas as crianças até à altura dos meus filhos. Os pais dessa época foram autónomos, mas agora não permitem que os filhos sejam.
E a segunda motivação?
É dar a palavra às crianças, o direito a serem ouvidas. Por trás de tudo isso está a Convenção sobre os Direitos das Crianças, que as Nações Unidas aprovaram em 1989. É por isso que o nosso projeto nasce muito próximo desse acontecimento tão importante. O artigo 12 diz muito claramente que as crianças têm direito a exprimir a sua opinião sempre que forem tomadas decisões que lhes dizem respeito e, infelizmente, isso nunca acontece. As crianças continuam a não ter uma voz ativa.
Fano acabou por servir de laboratório de experimentação e de exemplo a outras cidades. Os desafios que encontrou nessas cidades foram semelhantes aqueles que o fizeram pensar inicialmente na “Cidade das Crianças”?
Cada cidade é diferente das outras por muitas razões, de tamanho, características ou cultura. Mas também é diferente pelo compromisso que assume com este projeto, que não quer ser apenas mais um. Estamos a propor uma nova filosofia na forma de governar o município, por isso pedimos que o projeto seja assumido pelo próprio presidente da câmara. Porque é proposta uma forma diferente de pensar toda a política, deixando de ter como ponto de referência um homem adulto, do sexo masculino, e assumir a criança como ponto de referência. Isto significa utilizar de outra forma os recursos que a cidade dispõe, alterando as prioridades. Porque, atualmente, a prioridade na maioria das cidades é o automóvel. É ele que manda, preocupa e ocupa a política. Com a filosofia que estamos a propor, queremos que no topo da hierarquia de prioridades estejam as pessoas. Todas as pessoas que vivem na cidade e não só os poderosos que lá trabalham.
Já o ouvi dizer que “a cidade nunca será das crianças” e que esta é uma ideia utópica, mas que não devemos deixar de lutar por ela…
Digo-o no mesmo sentido em que [Eduardo] Galeano entendia e usava a palavra utopia, ou seja, quando te aproximas um passo, afasta-se um passo. E para que serve isso, perguntam os outros? Serve para caminhar. É uma motivação para seguir em frente, ir em direção à mudança. Podemos não chegar lá, mas tudo o que fazemos com esse intuito é bom, é útil. Quando me perguntam sobre os resultados, 33 anos depois, podemos dizer que em quase todas as cidades que adotaram o projeto houve um aumento da sensibilidade em relação à infância, tal como aumentou a atenção às crianças. E isso já é uma aprendizagem fundamental. Até porque o direito de as crianças expressarem a sua opinião não se encontra na educação. Uma criança entra na escola aos seis anos e durante muito tempo tem de estar sentada e calada. Estas são duas condições absolutamente absurdas para um menino ou uma menina. Pedir a uma criança que passe horas e horas sentada no mesmo sítio a ouvir um ou vários professores, que propõem atividades diferentes sempre no mesmo local, a um nível educativo, é um absurdo total e, de facto, os efeitos e os resultados são muito fracos.
Os parques infantis das cidades acabaram por ter um efeito perverso, ao “prenderem” as crianças em espaços iguais a tantos outros, ou são uma inevitabilidade?
Aqui entramos num assunto que me diz muito e por isso lançámos uma campanha dedicada a esta questão da brincadeira livre das crianças. Na minha infância e na infância dos meus filhos, todas as crianças - e é muito importante sublinhar todas – viviam, pelo menos, três experiências obrigatórias. Uma era a família, o lugar dos afetos e das necessidades primárias, da felicidade e da dor; a segunda era a escola, um sítio onde ansiávamos pela hora de terminar; e a terceira era a rua, um lugar para onde todos iam. Mas em muitos países fez-se mais ou menos um acordo internacional, como se fosse uma segunda convenção, dizendo que as crianças já não podiam sair de casa. E decidiram-no por duas razões. Primeiro, começou a dizer-se que as cidades já não o possibilitavam, ou seja, que se tinham tornado lugares perigosos. E isso é falso. As cidades do passado eram mais perigosas do que as de hoje. A segunda razão, ainda pior, diz que as crianças de hoje não são capazes. Um insulto.
Uma vez tomada a decisão de as crianças não poderem sair, o que é que se fez? Ofereceram-se os parques infantis. E apareceram, como estas coisas aparecem sempre, por uma razão de mercado, produzidos por indústrias. São equipamentos muito caros, porque têm de respeitar normas de segurança muito rigorosas, sofrem muito vandalismo e, afinal de contas, não têm nada que se assemelhe a uma brincadeira. As crianças são muito claras quanto a isso. E dizem-nos que são todos horizontais, que não é possível esconderem-se e que têm sempre os mesmos brinquedos. É como ver o mesmo filme todos os dias.
Pode dar-nos alguns exemplos?
Sim, uma menina disse-nos que os parques infantis não têm arbustos para dar beijos às escondidas e um rapaz comentou que os sítios para as crianças brincarem não devem ser demasiado seguros. E aqui surge outra grande questão: de como a rua era um sítio onde também se encontrava o obstáculo e o risco. A psicóloga francesa Françoise Dolto respondeu assim à pergunta “o que é brincar para uma criança”? “É a realização dos desejos. Através de riscos”. Ou seja, o risco é um elemento fundamental do brincar. Tal como o brincar é um elemento fundamental da vida. E só brincando livremente as crianças podem enfrentar um obstáculo, tentar encontrar estratégias para o ultrapassar e viver o orgulho de o superarem ou a frustração de não o conseguirem. As duas emoções são importantes porque ajudam-nas a crescer.
É por isso que estou a fazer uma proposta: fechem, acabem com os parques infantis e ofereçam o espaço público da cidade para as crianças brincarem. Nós não deixamos as crianças irem para a rua, porque achamos que ela é perigosa, mas na minha opinião a rua é perigosa porque não tem crianças.
A rua continua a ser o sítio mais democrático e mais saudável para brincar?
Claro que é! Porque a rua é o lugar do encontro. E o brincar é inclusivo se os adultos não estiverem presentes, se deixarmos que as crianças se encontrem entre elas. Por exemplo, nesta entrevista [online] estou a falar a partir de uma pequena aldeia da Toscana [Itália] onde vivem poucas pessoas, mas, no verão, os emigrantes regressam com crianças. E é impressionante ver as que falam francês e italiano a comunicar e brincar juntas. Isto é integração.
As cidades e os espaços são desenhados por adultos. É possível integrar as ideias e os desejos das crianças no processo de criação e planeamento?
Não devemos ser ingénuos e pensar que as crianças encontram soluções para os erros que nós cometemos. As crianças não sabem mais do que nós e não têm as respostas, sobretudo quando as colocamos perante temas como a paz, a guerra, o clima ou o futuro do planeta. Se responderem, dizem o que ouviram na televisão ou de nós. E é por isso que entendo ser um caminho errado.
Mas as crianças são úteis noutras situações. Não foi por acaso que teve de ser uma criança a gritar “o rei vai nu!”. No conto de Andersen, todos os dignitários aplaudem o rei porque têm uma relação de dependência. Mas a criança não tem e, por isso, diz a verdade. Assim, é útil para quê? Para nos ajudar a compreender, por exemplo, o que está a faltar na cidade. Também o Principezinho tem razão quando diz que todas as pessoas grandes já foram adultas, mas poucas se lembram disso.
Os presidentes da câmara esqueceram-se da sua infância. E quando se apercebem disso perguntam às crianças e pedem o seu ponto de vista, prometendo que as vão ouvir sempre, embora isso não significa que o façam. Mas ouvir sim, fazem-no. E neste processo de escuta, as crianças são preciosas porque nos ajudam a entender coisas que nós não consideramos.
Também gosta de lembrar os autarcas que uma cidade desenhada para as crianças é melhor para todos e, em particular, para os idosos e deficientes…
Muitas vezes dizem-me que o critério deveria ser os idosos, porque há mais idosos que crianças. Mas toda a gente tem uma memória estimada da sua própria infância, enquanto ninguém quer ser velho. E por isso, a velhice não pode ser um modelo para a vida de todos. Pelo contrário, as crianças, sim, devem servir de parâmetro para avaliar a capacidade de uma cidade se adequar às necessidades de todos. E eu dou também este conselho: aproveitem as crianças para os indicadores ambientais.
Por exemplo, não se encontram pirilampos ou andorinhas onde há poluição em excesso, e com as crianças passa-se um bocadinho o mesmo. Se as crianças desaparecerem do espaço público isso significa que a cidade está doente. E a cidade será salva quando as crianças voltarem a aparecer.
O automóvel continua a ser um dos principais inimigos das crianças nas cidades. Isto acontece porque os autarcas têm medo de perder eleições? Até porque os mais novos não votam...
Essas são duas questões muito interessantes. No meu livro “A Cidade das Crianças” dedico um capítulo ao direito de voto, defendendo que as crianças possam ter uma palavra a dizer nas eleições. Se elas são cidadãs devem ter direitos e entre os direitos está o direito de voto.
O que estou a propor é coerente com a disciplina familiar, ou seja, que até à maioridade seja a família a utilizar o voto dos filhos. Quando me dizem, quase escandalizados, que votar é uma coisa séria, eu digo que mandar uma criança para a escola ou batizá-la também o são. Enfim, tomamos decisões muito mais sérias do que um voto em nome dos nossos filhos. E, portanto, esta é mais uma e seria muito interessante, porque se abríssemos esta janela, provavelmente os partidos iriam pegar no assunto.
E talvez repensar a mobilidade...
Quando apresento os meus projetos a um presidente da câmara, nunca tive um que dissesse ser um disparate. O mais comum é dizerem “gosto muito, mas dêem-me um ano ou dois para resolver o problema do trânsito e depois falamos sobre isso”. Isto já é decisivo, porque significa que não vamos falar mais sobre o assunto. Dizem-me que o tema do trânsito não pode ser resolvido porque na hierarquia de prioridades o automóvel vem em primeiro lugar. Portanto, antes de mais, temos de resolver a questão do automóvel.
Que conselhos pode dar aos decisores, mas também aos pais e à sociedade civil, no sentido de se alcançar uma cidade cada vez mais amiga das crianças?
Escutá-las. Esta é a chave. E não apenas com os ouvidos. Também olhar para elas e conhecê-las, mesmo as crianças com cinco meses, que não falam. Lembro-me sempre de um menino - hoje adulto -, que no primeiro Conselho das Crianças de Fano me disse: “eu não acreditava que os adultos nos ouviam e estavam dispostos a fazer o que pedimos. Mas quando vi que nos ouvem, senti-me responsável”. Isso impressionou-me, porque ele não disse ter ficado orgulhoso ou feliz, mas utilizou a palavra responsável. Ou seja, apercebeu-se que, a partir daquele momento, devia ter cuidado com o que propunha, porque até é possível que o concretizem. E isso cria responsabilidade.
Um crescido que não se esqueceu do que é ser criança
Francesco Tonucci é um pensador, psicopedagogo e cartoonista italiano, mas também pai, avô e “criançologo”, como gosta de se apresentar. Aos 84 anos, continua a ter muitas facetas, todas indissociáveis do universo infantil e de uma missão de longa data: dar voz às crianças e garantir-lhes o direito a brincar na rua.
Nasceu em Fano, uma pequena cidade nas margens do Adriático, e desde cedo mostrou jeito para o desenho, que viria a revelar mais tarde sob o pseudónimo Frato. Também deu aulas, que lhe aguçaram o olhar crítico sobre a escola, e escreveu dezenas de livros. O mais famoso é “A Cidade das Crianças”, obra que publicou na década de 90, já depois de ter lançado o conceito na sua cidade natal. O mesmo que mais de 300 cidades por todo o mundo, entre elas Valongo, procuram seguir através da rede internacional “A Cidade das Crianças”.
Além dos municípios, também inúmeros movimentos cidadãos têm bebido inspiração nas obras e iniciativas de Tonnuci, incluindo em Portugal, como é o caso do projeto Serpentina, no Porto, ou o evento "A Cidade das Crianças", que acontece todos os anos no concelho de Almada.