A brincar, a brincar, pais e crianças do Porto ensaiam cidade mais amigável

Urbanismo e Sociedade

A brincar, a brincar, pais e crianças do Porto ensaiam cidade mais amigável

Nelson Jerónimo Rodrigues, Texto
Dinis Santos e Miguel Refresco, Fotografia 

Da luta por melhores parques infantis nasceu um projeto, a Serpentina, que ambiciona um Porto mais amigo das crianças. O bairro do Bonfim serve de tubo de ensaio a várias iniciativas comunitárias, ajudando a desenhar uma ideia abrangente de transformação urbana que começa no direito ao brincar e atravessa diferentes gerações.

“Vamos ao parque?” A pergunta que todas as crianças gostam de ouvir deu nome a uma petição lançada há três anos por um grupo de mães e pais da cidade do Porto, em defesa de parques infantis mais seguros, inclusivos e diversificados. Daqui surgiu um movimento cidadão e alguns contactos com a câmara municipal, mas também a vontade de duas mães, Maria João Macedo e Patrícia Costa, em dar forma a esta visão comum através de um projeto para a ação que envolva toda a comunidade.

Chamaram-lhe Serpentina e começaram pelo parque infantil que mais conhecem, o do Largo Soares dos Reis, tantas são as vezes que lá vão com os filhos. “E se deste recanto do Porto começasse algo mais vasto, verdadeiramente transformador?”, perguntaram uma à outra, pouco depois de se conhecerem. Dito e feito. A partir deste ano, o Bonfim passou a ser uma espécie de laboratório que ensaia uma cidade para brincar. “Rapidamente percebemos que este parque muito frequentado, com inúmeras escolas à volta, mas também barulho e poluição, poderia ajudar a testar uma ideia de transformação urbana com foco nas crianças, que vê no brincar não apenas um direito, mas também uma chave para repensar e para reimaginar a cidade”, diz a designer Maria João Macedo.

As primeiras candidaturas não tiveram sucesso, mas a dupla não desistiu e a participação na edição deste ano da Porto Design Biennale trouxe um novo fôlego à ideia, selecionada como um de seis projetos de intervenção com impacto duradouro na cidade. O timing não podia ser melhor, até porque a autarquia portuense tinha acabado de anunciar a intenção de revitalizar vários parques, entre eles este, que já tem financiamento prometido da câmara municipal e aguarda agora por uma aprovação final do projeto prévio.

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Ideias não faltam à equipa da Serpentina e para todas contribuíram muitos portuenses, desde moradores e comerciantes da zona a programadores culturais, passando por consultores nas áreas do brincar, da motricidade, do paisagismo e da segurança Infantil, sem esquecer a parte mais importante: as crianças. “Houve um momento em que fomos com elas para o parque, para vermos como o utilizavam, e percebemos que nem todas conseguiam brincar com os equipamentos que lá estão [um escorrega e três baloiços], acabando por ter de reinventar as brincadeiras”, recorda a educadora social Patrícia Costa. Quando lhes perguntaram o que gostariam de encontrar, a maioria falou em espaços para explorar livremente e sítios para brincar às escondidas, mas também árvores para trepar e até uma parede de escalada em forma de pizza. Ao mesmo tempo, foi possível perceber que os mais novos valorizam bastante as árvores centenárias do local, bem como a segurança rodoviária. “Muitos defenderam a circulação exclusiva a trotinetes e bicicletas, além da criação de passadeiras e semáforos especiais, que privilegiem os peões e impeçam a entrada dos carros, revelando uma grande noção do envolvimento urbano e vontade de melhorar as coisas”, acrescenta Maria João Macedo.

Entre os momentos de consulta à população esteve também o questionário online “Como brincam as crianças nos parques infantis do Porto?”. Os dados ainda estão a ser tratados, mas há respostas que saltam à vista, como a necessidade de criar um entorno mais protetor, que resguarde as famílias do trânsito e da poluição sonora, além de sombras e bancos para sentar. “Curiosamente, muitas não estão só ligadas à construção de equipamentos, mas ao facto de poder ser um espaço confortável para as pessoas, que permita o convívio e o encontro entre todos”, revelam as cocriadoras da Serpentina. Seguidoras do pedagogo italiano Francesco Tonucci, para quem “uma cidade boa para as crianças é uma cidade boa para todos”, as duas mães interpretam estes resultados como um sinal positivo da comunidade, consciente da necessidade de criar espaços de encontro intergeracional confortáveis e seguros.

Na proposta que a Serpentina entregou à câmara municipal cabe toda a família, bem como muitas das preocupações e pedidos que crianças e adultos apresentaram nas várias fases de auscultação. A equipa, que integra também o atelier de arquitetura Cannatà Fernandes e a artista plástica Letícia Costelha, sugere, por exemplo, uma modelação de terreno (tipo “montinhos”) que ajude a criar zonas mais protegidas e de contacto com a natureza, sem qualquer tipo de vedação clássica à volta, além de pavimentos naturais e uma bacia de retenção para a água das chuvas. “Tudo isto responde a uma ideia base, a criação de um jardim intergeracional que vai além do parque infantil, onde todas as pessoas possam realmente conviver e em que as brincadeiras são integradas no próprio jardim”, remata Patrícia Costa, invocando o direito universal ao espaço público. A responsável da Serpentina lembra que a autarquia poderá seguir apenas uma parte ou a totalidade deste “projeto arrojado”, mas acredita que, com mais ou menos alterações, a remodelação do parque infantil esteja concluída no final do próximo ano. Nessa altura, o Largo Soares dos Reis poderá ser uma amostra de cidade das crianças e, quem sabe, um exemplo a seguir para o resto do Porto.

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Fechar ruas, abrir territórios de experimentação

Enquanto o projeto do parque infantil aguarda por luz verde e serpenteia pelos gabinetes da câmara municipal, Maria João Macedo e Patrícia Costa continuam de mangas arregaçadas, apostadas em mostrar que a cidade brincável não é uma utopia. E provaram-no recentemente, ao organizar no final de outubro a iniciativa “Ocupar Brincar”, uma ativação do território no âmbito da Porto Design Biennale, que fechou o trânsito motorizado em todo o percurso entre o Largo Soares dos Reis e a Praça da Alegria. Desde o início da manhã até ao final da tarde, a rua Joaquim António da Aguiar e áreas envolventes receberam um pequeno-almoço comunitário, oficinas artísticas, jogos, espetáculos musicais, leituras de contos e um passeio com um periscópio invertido, num dia inteiro dedicado à aprendizagem e à brincadeira livre. Para esta apropriação do espaço contribuiu toda a comunidade, desde vizinhos e lojas da rua, a artistas, músicos e moradores de outras zonas da cidade.

O conceito é semelhante à iniciativa “A Rua é Nossa”, que a autarquia organiza noutra artéria do Bonfim, a Avenida Rodrigues de Freitas, mas com um espírito de vizinhança e de proximidade ainda mais vincado. “Pensando em exemplos como Barcelona, que criou os superblocks, poderia ser mais interessante ter este tipo de teste em zonas mais residenciais e em ruas interiores de quarteirão. E é isto que estamos a tentar, de alguma forma, demonstrar à câmara”, adianta Maria João Macedo, que faz um balanço muito positivo da iniciativa.

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O evento serviu ainda de palco à apresentação do novo Parque da Alegria, também conhecido por Laboratório do Brincar, outro projeto da Serpentina que começou quase do nada, ou seja, de um pequeno “triângulo verde”, sem uso, que as duas mães acreditam ser “um espaço perfeito para fluir a imaginação”. Situado na interceção da Rua Barão de São Cosme com a Rua Joaquim António Aguiar, muito próximo do parque infantil do Largo Soares dos Reis, tem tudo para se tornar “num laboratório vivo, que permita observar como as crianças interagem e, ao mesmo tempo, experimentar diversas brincadeiras e atividades”. Para já, passou a ter três bancos de jardim, que são muito mais do que isso, porque simbolizam a ideia de “reclamar este espaço e fazer dele um parque para as pessoas”.

A luta da Serpentina pela criação de ambientes urbanos amigáveis também já chegou às escolas, tanto dentro como fora delas. Um bom exemplo é a Escola da Alegria, no Porto, “onde há um recreio em alcatrão, sem sombras, que deveria ser todo naturalizado com chão natural, transformando-se num espaço sustentável e com árvores que convidem à exploração e ao movimento livre”, defende Patrícia Costa. Para o exterior, reivindica-se uma espécie de “rua da escola” junto à Praça da Alegria, conceito largamente implementado em cidades como Paris ou Milão, que se concretiza com o corte do trânsito motorizado, no mínimo durante os períodos de entrada e saída das crianças.

Não muito longe dali, também o parque das Fontainhas chamou a atenção das duas mães, desde logo “porque parece parado no tempo, ainda com azulejos da época do Estado Novo e brinquedos muito desinteressantes”, mas também por estar “todo murado e ter vedadas as vistas sobre o rio Douro”, explica Maria João Macedo. Derrubem-se então estes muros e obstáculos físicos, apela a dupla, até porque “o enclausurar dos parques infantis é uma ideia do passado”, totalmente desalinhada com o estatuto de “Cidade Amiga das Crianças” atribuído ao Porto pela UNICEF em 2019.

Olhando para o mapa de sonhos e objetivos da Serpentina, facilmente se identifica um corredor verde, acessível e inclusivo, que se estende deste o Largo Soares dos Reis às Fontainhas. Os sorrisos das crianças beneficiadas seriam um bom barómetro para esta espécie de cidade brincável, mas a proposta chega a pessoas de todas as idades e gerações, sem exigir grandes obras ou investimentos, lembram as autoras. “No fundo, de pequenos gestos e questões, podem surgir ligações profícuas. Nem tudo tem de ser feito de grandes estruturas. Às vezes, pequenas alterações e mudanças acabam por transformar completamente o uso dos espaços”, conclui Patrícia Costa. Porque, afinal, basta um parque, dois ou três bancos, uma rua mais segura e um projeto de design participativo para “mudar, para melhor, um bocadinho da vida de todos”.

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Publicado em 6 Novembro, 2025 - 11:29
Arquitectura
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